O livro Todo Dia a Mesma Noite (2018), em que a jornalista mineira Daniela Arbex reconstitui a tragédia da Kiss, está virando uma minissérie ficcional da Netflix. Serão cinco capítulos, com estreia prevista para 2023, provavelmente nos 10 anos do incêndio que, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, matou 242 jovens na boate de Santa Maria.
O elenco inclui Thelmo Fernandes, Paulo Gorgulho, Bianca Byington, Leonardo Medeiros, Debora Lamm, Lucas Zaffari, Raquel Karro, Bel Kowarick, Erom Cordeiro, Paola Antonini, Nicolas Vargas, Flavio Bauraqui e Laila Zaid. A direção geral é de Julia Rezende, responsável pelas comédias da TV e do cinema Meu Passado me Condena (2012-2015) e pela série de drama e romance Coisa Mais Linda (2019-2020), ambientada no Rio dos anos 1960. Quem assina o roteiro é Gustavo Lipsztein, do filme O Paciente: O Caso Tancredo Neves (2018) e cocriador da série policial 1 Contra Todos (2016-2020).
Nesta terça-feira (24), o carioca Tiago Rezende, da Morena Filmes, produtora da minissérie, concedeu entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha. Aos apresentadores Luciano Potter e Kelly Matos, o produtor contou que, quando leu o livro, ficou "chocado, arrepiado":
— Bateu um sentimento de indignação, de revolta. A Daniela tem um detalhamento, um zelo e uma sensibilidade para dar voz a quem precisa ser ouvido. Nossa intenção com a série é, nas palavras da Julia Rezende, dar um passo importante para a construção de uma memória coletiva do país. Transformar o luto em luta e propagar para o mundo (via a distribuição global da Netflix) a dor dessas famílias e sua busca por justiça.
Autora de Holocausto Brasileiro (2013), que retrata o padecimento de milhares de doentes mentais internados num hospício em Minas Gerais, de Cova 312 (2015), sobre um preso político gaúcho, morto pela ditadura militar, e de Arrastados (2022), sobre os bastidores do desastre ambiental de Brumadinho, em 2019, Daniela Arbex disse em entrevista ao jornalista de GZH Humberto Trezzi que ficou impactada pelo tamanho da "devastação humana" provocada pelo incêndio:
— Foi um tsunami de dor cujas ondas continuam sendo sentidas. Encontrei casais que perderam o filho e que continuam se amando, mas que, desde o evento, nunca mais conseguiram se tocar. Dá para imaginar isso? Mães que se ausentaram voluntariamente da vida e, mesmo tendo outros filhos, não sabem lidar com eles, pois é como se a presença de um remetesse à ausência do outro. Entre os profissionais de saúde, a surpresa foi perceber que eles responderam com silêncio a todo o trauma ao qual foram submetidos. Hoje (em 2018), cinco anos depois do evento, muitos estão em tratamento psiquiátrico. Alguns deram entrevista pela primeira vez para o livro, e o mais surpreendente foi perceber que eles, durante todo esse tempo, jamais falaram entre si sobre a experiência que viveram.
A tragédia da Kiss não é a única história real com a qual a Morena Filmes está envolvida no momento. A produtora lança em agosto nos cinemas Eike: Tudo ou Nada, filme inspirado no livro homônimo da repórter Malu Gaspar, codirigido por Mariza Leão e Tiago Rezende e com Nelson Freitas no papel do ex-bilionário Eike Batista e Carol Castro na pele de Luma de Oliveira.
Por questões de contrato, Rezende não pôde revelar detalhes de Todo Dia a Mesma Noite ao Timeline. Mas contou que há dois núcleos de personagens (o dos mais velhos, formado por pais das vítimas, e o dos jovens) e que os atores de fora do Rio Grande do Sul passaram por um trabalho de prosódia para incorporar regionalismos e, assim, "chegar a um tom com o qual o povo gaúcho se identifique". Afirmou que as gravações estão bem adiantadas e explicou por que, no Rio Grande do Sul, escolheram Bagé como locação para a minissérie:
— Optamos por não filmar nada em Santa Maria em respeito à dor local. Também por isso, na hora de revisitar a tragédia, vamos tentar ser verossímeis, mas hiperdelicados. É o mostrar sem mostrar. Contaremos os fatos, as histórias, mas com uma preocupação de não sermos sensacionalistas.
"Um dos acontecimentos mais marcantes da minha geração"
Por coincidência, dias atrás eu entrevistei um dos atores de Todo Dia a Mesma Noite, o porto-alegrense Lucas Zaffari, 32 anos, que tem no currículo a minissérie Verona (2020, disponível no Prime Box Brazil) — transformada em filme pela diretora Ane Siderman e com estreia prevista para o último trimestre —, a novela Gênesis (2021, na Record), no papel de Elom, e a ficção científica Distrito 666 (2022, no Globoplay e no Telecine), de Paulo Nascimento.
A exemplo do produtor Tiago Rezende, Zaffari não pôde falar muito sobre a minissérie da Netflix, mas revelou sua satisfação em "poder estar perto de um projeto como esse, pois é uma história que não pode ser esquecida e deve sempre servir de alerta"
— Foi um dos acontecimentos mais marcantes de minha geração, não somente aqui no sul do Brasil, mas no país todo e no mundo — disse o ator.
Confira outros trechos da conversa:
Verona transpõe para a fronteira do Brasil com o Uruguai a clássica história de Romeu e Julieta. Na tua opinião, além da questão geográfica, no que esta adaptação se difere do original e de outras modernizações?
A tragédia de Shakespeare é a base da história. Esta versão, além de se passar nos tempos de hoje, se aprofunda um pouco mais nas relações dentro da família. Os conflitos dos personagens, muitas vezes internos, e a necessidade que sentem em externalizá-los, são prejudicados pelo momento em que a história se passa: o curto período entre o Natal e Ano Novo. É uma história linda e que merece ser vista!
Os bastidores de Verona também contam com uma história de amor que, infelizmente, terminou de forma abrupta: a morte, em decorrência de câncer no fígado, do ator Leonardo Machado (1976-2018), marido da diretora Ane Siderman e idealizador da trama. Como foi fazer parte de um projeto tão pessoal?
Foi uma oportunidade única. E me sinto muito abençoado por fazer parte deste projeto. Infelizmente não tive o prazer de conhecer o Leo pessoalmente, porém, o conheci através do carinho com que todos falavam dele. Muitos da equipe e a maioria dos atores tinham tido contato com o Leo, e a presença dele era sempre percebida. Mas principalmente a Ane, nossa diretora e sua viúva, fez essa história ser pessoal, não só para ela, mas para todos os envolvidos. Os personagens foram desenhados e cocriados por todos juntos. Foi um trabalho muito bacana e enriquecedor. Inclusive, houve tantas coincidências entre os atores e os personagens que até virou letra da música Coincidências e Sinais, que Eu Pude Perceber. Nosso poeta e músico Duca Duarte foi muito feliz quando compôs essa letra junto com a Ane. Tamanha dedicação da diretora me inspirou ainda mais. Aprendi a cavalgar, tocar guitarra, perdi seis quilos nos dois meses de preparo e até cantei. Foi um projeto marcante, de boas lembranças que vou levar para o resto da minha vida.
Tu tinhas 20 e poucos anos quando aconteceu o incêndio em Santa Maria. Já tinhas ido estudar nos Estados Unidos ou ainda estava no Brasil? O que lembras daqueles dias? Como o caso Kiss te marcou?
Eu ainda estava no Brasil quando aconteceu essa tragédia, e me lembro bem que tinha acordado havia pouco tempo quando as primeiras notícias chegaram. Foi um choque total! Não apenas pelo horror do acontecimento e das terríveis imagens que passavam na TV, mas também porque eram jovens como eu, em uma noite comum de diversão. Tudo aconteceu apenas um dia após a minha festa de formatura. Eu ainda morava com meus pais, e ficamos vendo as notícias juntos. Os números simplesmente não paravam de subir, um pavor. Tudo me marcou, mas principalmente as imagens dos jovens deitados no chão, na frente da boate, enquanto os bombeiros e pessoas comuns tentavam ajudar como podiam. Essa tragédia deixou muitas marcas, muita dor e também ensinamentos. Hoje, sempre que saio, fico atento às portas de emergências, inclusive, em hotéis, quando chego no quarto já procuro a saída mais próxima. Isso virou uma preocupação que antes não tinha.
Outro recente trabalho teu é Distrito 666, uma distopia ambientada em 2042, quando um grupo de jovens descobre segredos do governo brasileiro em relação à pandemia. Pode falar sobre a experiência de fazer esse filme?
Nossa. Foi um desafio e tanto. Eu recebi o roteiro final deste projeto uns 10 dias antes do início das gravações, e filmamos em duas línguas, "Double Shooting", como Paulo Nascimento me disse. "Todos os atores gravam tanto em português quanto em inglês, só que tem uma coisa: para agilizar o processo, a cada mudança de posicionamento de câmera, tem que filmar ambas as versões". Então, eu tinha de ficar trocando os idiomas a cada mudança de plano, dava um nó no cérebro, haha. E esse não foi o único desafio. Por ser um trabalho filmado em plena pandemia, foi escrito de tal forma para que não houvesse muita interação presencial entre os atores. Por isso, além de decorar todas as falas em duas línguas, 90% de toda minha atuação foi para uma tela de computador.
Parece que histórias trágicas te perseguem, ou é tu que as persegue?
Eu acho que elas me perseguem. Mas também acho que as tragédias são mais lembradas, marcam mais a nós. São mais profundas e, normalmente, têm mais conteúdo sobre o qual se pode trabalhar em cima, criar, e eu gosto de imergir nos personagens que interpreto.
E o que mais vem pela frente? Na tua carreira, tem algum ator que seja um modelo, ou algum objetivo a longo prazo já traçado?
Além da série sobre a boate Kiss, no meio deste ano será lançada a segunda temporada de Chuteira Preta no Amazon Prime Video, na qual faço participação. E também já estou escalado para filmar um longa no final deste ano, uma história baseada em fatos reais sobre a ditadura chilena de 1973. Estou animadíssimo para este papel. Quanto a modelos, eu gosto de muitos atores, sempre tento me inspirar a cada boa atuação que vejo, mas acho que meu predileto seria o Leonardo DiCaprio.