O Supercine da RBS TV exibe à 1h deste domingo (24) Queen & Slim: Os Perseguidos (Queen & Slim, 2019), baita filme estrelado por Daniel Kaluuya e Jodie Turner-Smith que mistura o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) com a história do casal de criminosos Bonnie & Clyde. Esse título valeu a Melina Matsoukas o prêmio de melhor estreante em direção pela National Board of Review, uma das principais associações de críticos dos Estados Unidos, e uma indicação, na mesma categoria, do troféu concedido pela Associação dos Diretores dos EUA.
Hoje com 43 anos, Matsoukas já havia conquistado prêmios na sua carreira como diretora de videoclipes — assinou, por exemplo, Bleeding Love (Leona Lewis), We Found Love (Rihanna e Calvin Harris) e Formation (Beyoncé). Em Queen & Slim, ela dirige um roteiro escrito por Lena Waithe — vencedora, com Aziz Ansari, do Emmy de melhor roteiro em série cômica pelo episódio Thanksgiving (2017) de Master of None — a partir de uma história de James Frey.
A trama se passa nos EUA e retrata um problema social tipicamente estadunidense (e também brasileiro), mas, por coincidência, seus dois protagonistas são interpretados por britânicos. Kaluuya ganhou o Oscar de coadjuvante por Judas e o Messias Negro (2021) e concorreu a melhor ator por Corra! (2017). Turner-Smith estrelou a minissérie Ana Bolena: A Rainha (2021) e está no elenco de Ruído Branco (2022).
Quando Queen & Slim começa, seus personagens, depois de se falarem virtualmente durante meses, estão vivendo o primeiro encontro em restaurante popular de Cleveland — a cidade de Ohio não foi escolhida por acaso: lá, em 2014, o garoto negro Tamir Rice, 12 anos, foi morto por um policial branco, Timothy Loehmann. Um vídeo mostra que Loehmann atirou apenas dois segundos depois que seu carro de patrulha parou ao lado da criança. O policial alegou que viu Tamir pegar, na cintura, um objeto parecido com uma arma — mas era uma arma de brinquedo.
A química entre Kaluuya e Turner-Smith é imediata, embora não se possa dizer o mesmo sobre os dois personagens, dos quais só saberemos os nomes bem mais tarde. Ela é uma advogada idealista que acabou de perder um de seus clientes, sentenciado à pena de morte. Ele é um cara simples e dedicado à família. Após o jantar, enquanto leva a mulher para a casa dela (ou tenta levar para a sua casa), o carro do homem é parado por um policial branco.
O racismo e a truculência fazem as coisas escaparem ao controle, e a partir daí os personagens de Kaluuya e Turner-Smith empreendem uma fuga pelas estradas dos EUA, remetendo ao casal Bonnie Parker e Clyde Barrow, celebrizado na década de 1930 e eternizado no filme de 1967 dirigido por Arthur Penn e estrelado por Faye Dunaway e Warren Beatty. O paralelo chega a ser mencionado por um coadjuvante no longa de Melina Matsoukas, mas há uma diferença fundamental: Bonnie e Clyde eram brancos que escolheram uma vida de crime (assaltavam bancos); em Queen & Slim, temos cidadãos inocentes forçados a reagir diante de um sistema em que ser negro é uma condenação prévia (como visto, por exemplo, em Emergência).
Na fuga empreendida, os personagens vão passar por cidades como New Orleans e Miami, ouvindo uma ótima seleção musical e até dançando em uma das paradas — em certos momentos, o filme assume ares de videoclipe estiloso, como se fosse uma versão contemporânea das histórias de gângster que ajudaram a popularizar a Blaxploitation na década de 1970. Vão interagir com tipos como o tio Earl (Bokeem Woodbine), que mora com duas prostitutas, e um casal interpretado pela atriz Chlöe Sevigny e pelo baixista Flea. Vão citar ícones do ativismo, como Assata Shakur, que integrou o partido dos Panteras Negras e o grupo paramilitar Exército Negro de Libertação, e tornarem-se eles próprios símbolos do Black Lives Matter — movimento que surgiu nas redes sociais, em 2013, após a absolvição do vigilante voluntário que assassinou o adolescente negro Trayvon Martin, na Flórida, e que ganhou as ruas a partir de 2014, depois das mortes de Michael Brown, em Ferguson (Missouri), e Eric Garner, em Nova York, por policiais brancos.
Marcada por um senso de comunidade da população afro-americana, a jornada de Queen & Slim também alude à Underground Railroad, o nome dado a uma rede secreta de rotas e esconderijos utilizada por negros que buscavam escapar da escravidão no século 19 (recriada, sob o prisma do realismo mágico, no romance homônimo de Colson Whitehead que originou a minissérie homônima de Barry Jenkins). Ao mesmo tempo, o filme discute questões que atravessam gerações: "por que os negros sempre sentem a necessidade de serem excelentes no que fazem?", indaga o personagem de Kaluuya.
À medida que Queen & Slim avança, percebe-se que Matsoukas estendeu a duração a ponto de perder um pouco do fôlego. Em contrapartida, o tempo a mais é intensamente aproveitado por Kaluuya e Turner-Smith, que exibem novas camadas de seus personagens enquanto se conhecem mais um ao outro. O espectador pode se ver apaixonado pelos dois, que fazem jus aos apelidos (Queen, rainha, e Slim, elegante), mas a diretora e a roteirista evitam uma visão romantizada.
Pausa para ALERTA SOBRE SPOILERS.
Em 2019, em entrevista ao USA Today, a roteirista Lena Waithe afirmou que um "final de Hollywood" seria um desrespeito às famílias de Emmett Till, Trayvon Martin, Sandra Bland, Mike Brown, Eric Garner… — "A lista continua", disse Waithe (e essa lista logo seria acrescida por casos como os de Andre Hill, Breonna Taylor e George Floyd, em 2020).
Por outro lado, alguns espectadores e articulistas negros reclamaram que Queen & Slim apresenta uma denúncia já bastante conhecida e investe no chamado trauma porn, a exploração da dor e da tragédia negra para o consumo de massa. Muitas dessas queixas podem ser lidas em um artigo de Jordan Ligons no site The Ringer. "Os realizadores do filme seguram com força um espelho para nossa dor, mas não revelam nada em seu reflexo que já não tivéssemos visto tantas vezes. Não houve resposta, nenhuma solução. (...) Precisamos desafiar a narrativa para mostrar nossos bons dias, nossos triunfos e nossas vitórias também", escreveu a autora. "O final de Queen & Slim é uma ferida artística, uma pilha elegante de corpos ensanguentados. É impressionante em suas imagens, mas não cura", afirmou Brooke C. Obie, do Shadow and Act. "Por que a morte é algo que devemos esperar em todas as facetas de nossas vidas?", perguntou Clarkisha Kent, do Wear Your Voice. "Nós, o povo, somos mais do que nosso trauma, e não precisamos vê-lo repetidamente como se fosse o Dia da Marmota (referência ao filme Feitiço do Tempo, que inclusive inspirou o curta ganhador do Oscar Dois Estranhos) para entender que é um problema. Eu sinto que a ficção deveria ser uma fuga."
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