Provavelmente você, que gosta de televisão e streaming, deve ter deparado nos últimos dias com o seguinte aviso em produções: “Em alguns idiomas, a dublagem atrasou. A prioridade é a saúde dos dubladores”. O setor é mais um entre os tantos da indústria do entretenimento afetados pela pandemia de coronavírus, com estúdios fechados e profissionais parados.
A falta da voz em português no modo dublado já é uma realidade em novas produções: séries como Disque Amiga para Matar (Netflix), Run, I Know This Much is True (HBO), e Little Fires Everywhere (Amazon Prime Video) estrearam recentemente sem o idioma. Previsto para entrar no catálogo da Netflix em 12 de maio, o episódio especial interativo da série Unbreakable Kimmy Schmidt, intitulado Kimmy x Reverendo, teve sua estreia adiada no Brasil justamente pela falta de dublagem.
Isso tudo não só prejudica os saudosistas do formato (o Brasil é um dos países que mais consomem conteúdos audiovisuais dublados), mas também analfabetos, idosos e deficientes visuais, que não podem recorrer às legendas para assistir a filmes e séries.
A reabertura
No Brasil, algumas empresas do setor reabriram as portas entre abril e maio com um rígido protocolo de segurança e mudanças na dinâmica de trabalho. Antes do coronavírus, os dubladores entravam nos estúdios praticamente um atrás do outro para agilizar a gravação das vozes. Agora, há um espaçamento que varia de 15 a 30 minutos entre os profissionais.
— Muita coisa que acontecia antigamente não acontece mais, como os dubladores se esbarrarem na sala de espera de um estúdio. Temos que usar luva e máscara também — explica Patrícia Saiago, dubladora há quatro anos e sócia-diretora da All Dubbing, empresa de dublagem do Rio de Janeiro.
Os estúdios passam por uma completa higienização a cada profissional que entra no local. Além disso, o técnico de som e o diretor ficam bem distantes um do outro. O ritmo do trabalho acabou afetado pela nova rotina: de três dias, um filme agora pode demorar até uma semana para ter a versão dublada. Por isso, novas produções estão registrando atrasos na disponibilidade do serviço.
— A gente tentou se adaptar à nova realidade. Mas o tempo de produção dobrou. Trabalhamos com intervalo de 30 minutos entre um profissional e outro. Depois que ele sai, fizemos uma higienização completa da sala. A ideia é que a gente não prejudique nenhum dublador — explica Ana Lúcia Motta, CEO da All Dubbing.
O trabalho também está mais lento na Delart, outro estúdio da capital carioca onde o tempo necessário para a finalização de uma dublagem aumentou em cerca de 50%.
— Podemos dizer que, se antes fazíamos seis produções por semana, agora estamos fazendo três por conta do tempo maior que estamos levando contando a higienização do estúdio e a escala mais espaçada dos dubladores. Se antes levávamos, por exemplo, cinco dias para terminar uma produção, agora levamos cerca de oito dias — calcula o gerente de produção Fábio Nunes.
Tanto a Delart como a All Dubbing são responsáveis por grande parte das dublagens de filmes e séries que chegam no Brasil, atendendo gigantes do setor como Netflix, Amazon, HBO, Paramount, Sony, Universal e Warner.
Aumento nos gastos
Para reabrir as portas, a Delart adotou 14 medidas, o que acabou aumentando os gastos da empresa. Foram instaladas novas bancadas nos estúdios para facilitar a higienização, adquiridos tablets para que os trabalhadores não necessitem manusear papéis e eliminados os chamados “vozerios”, que é quando os dubladores se juntam para simular vozes de torcida ou manifestações coletivas.
— O nosso custo aumentou, foi necessário aumentar bastante os gastos com material de limpeza e segurança. Apesar de tudo, estes gastos não serão repassados aos clientes — diz Nunes.
Além do aumento das despesas, o estúdio também registrou prejuízos com trabalhos cancelados e sofre com os cinemas fechados.
— Tivemos uma temporada de uma série que já estreou na TV e que o cliente desistiu de dublar. A Delart dubla a maioria das produções para cinema também, e a grande maioria dos filmes desse ano foi adiada para o ano que vem. Infelizmente, o público ficou sem muitas produções dubladas durante essa crise — avalia.
Legendas sobrevivem
Por enquanto, as legendas são as salvadoras da pátria para que novos filmes, séries e programas sigam preenchendo as grades da TV e os catálogos do streaming. Isso porque é um trabalho que pode ser feito de forma remota, diferentemente da dublagem que necessita de equipamentos de som modernos para captar o áudio da forma mais perfeita possível — o que nem todos os profissionais do setor, na maioria autônomos, possuem em casa.
— Se fala da hipótese de fazer home studio, dos dubladores fazerem o seu trabalho em casa e mandar o material, mas aí tem muita coisa técnica envolvida e está sendo discutida — reflete a dubladora Patrícia Saiago.
— É quase impossível mandar os trabalhos para os dubladores fazerem em casa. A qualidade fica ruim, cada dublador teria um tipo de microfone diferente. Depois, quando a gente recebe cada áudio de um lugar diferente, fica ruim fazer a mixagem, fazer o som perfeito. A parte das legendas a gente consegue manter porque é feita em casa pelos legendadores — diz Ana Lúcia Motta, da All Dubbing, citando as dificuldades e exigências técnicas do setor.
As legendas possibilitaram, por exemplo, que a 16ª temporada de Grey’s Anatomy retornasse com episódios inéditos no Brasil. O canal Sony voltou a exibir a série médica no início de maio após uma pausa de algumas semanas, mas apenas com o áudio original em inglês.
Na Netflix, o episódios finais da segunda temporada de O Último Dragão, série/novela que fez sucesso no país, já estão com a dublagem em português disponível após estrearem somente com legendas. O mesmo ocorre com o filme Coffee & Kareem, onde agora já aparece um aviso de “dublagem disponível em seu idioma preferido” assim que o título é aberto no streaming.
A tendência é de que, com a abertura dos estúdios, as dublagens aos poucos comecem a aparecer como opção aos telespectadores. Mas, como tudo está sendo feito de forma cuidadosa e gradual, títulos com previsão de estreia para o segundo semestre podem ser os próximos afetados.
— Antes, eu gravava umas quatro vezes por semana. Agora é duas vezes. Estamos vivendo um dia de cada vez, não sabemos qual será o aumento da produção e essa frequência nos estúdios — conta a dubladora Patrícia Saiago.
— Esperamos que o setor se recupere logo apesar da situação. A dublagem não pode parar por muito tempo, levamos o entretenimento em nossa língua a todas as residências, e com todas as medidas adotadas de segurança torcemos para que tudo se normalize o mais breve — torce Fábio Nunes, da Delart.
O que dizem as empresas de streaming
As principais plataformas de streaming que oferecem conteúdos estrangeiros no Brasil se manifestaram sobre a falta de dublagem em português nos títulos que estrearam recentemente. Confira os posicionamentos enviados a GaúchaZH:
Netflix
“Muitos estúdios de dublagem estão fechados devido à covid-19, o que resulta em um atraso para algumas dublagens em alguns de nossos novos títulos. Nossa prioridade é a saúde e a segurança de todos os envolvidos. Esperamos disponibilizar essas dublagens em breve.”
Amazon
“Diante da atual situação de pandemia e focados na saúde e segurança daqueles que trabalham com dublagem, algumas opções de áudio não estarão disponíveis.”
HBO
“A HBO Latin America informa que algumas de suas produções originais poderão ser exibidas sem dublagem, mantendo a opção de legendas em português, em função das prioridades operativas tomadas para a prevenção do coronavírus (COVID-19). Retomaremos a opção de som dublado para tais produções o mais brevemente possível e agradecemos a compreensão.”