Ninguém ainda arrisca dizer uma data exata para a retomada de gravações de filmes, séries, novelas e programas de entretenimento na TV, paralisadas pelo coronavírus. Antes do quando gravar, a preocupação deste momento é como gravar.
A indústria do entretenimento já estuda uma adaptação da realidade do distanciamento social em frente e atrás das câmaras. Questões como cuidados com a saúde das equipes e o contato físico entre atores estão sendo discutidas. Cenas com abraços, beijos, sexo, festas e casamentos, tão presentes na ficção e até delineadoras das tramas, podem ficar comprometidas.
Será que Lurdes (Regina Casé) não vai poder abraçar seu tão procurado filho quando descobrir que Danilo é Domênico (Chay Suede) em Amor de Mãe, novela das 21h da Globo? Como seria o enredo de uma possível quarta temporada da série espanhola Elite com seus jovens com os hormônios à flor da pele? Não vai ter nenhuma festa de casamento no final da novela Salve-Se Quem Puder?
São perguntas que passam não só pela cabeça do espectador, mas também ocupam as cabeças criativas que trabalham no ramo.
— Quanto voltarmos, provavelmente será uma abertura gradual, começando com cenas sem beijos, sem casamentos, sem multidão. Será uma dramaturgia que leve em conta o coronavírus — diz Jorge Furtado, cineasta e roteirista de séries como Sob Pressão e Todas as Mulheres do Mundo, em entrevista a GaúchaZH.
No Brasil, roteiristas, produtores e sindicatos de trabalhadores do setor estão participando de reuniões para definir novas diretrizes para a retomada das gravações. A inspiração vem de Hollywood, que já pensa em medidas para que a maior indústria audiovisual do mundo não fique parada por muito tempo.
Quarentena até para roupas
Circula entre produtores nos Estados Unidos um documento em que estão sendo coletadas sugestões para a retomada das gravações em um cenário sem cura ou vacina para a covid-19 e, ao mesmo tempo, sem colocar a saúde de ninguém em risco. A revista norte-americana Variety teve acesso à lista que mostra as rigorosas regras pensadas para minimizar a propagação da doença no set. Entre elas, estão:
- Elenco e equipe reduzidos ao mínimo — talvez uma pessoa faça duas ou três funções.
- Antes da produção ter início, equipe cumpre quarentena por duas semanas em um local distante, como um hotel totalmente higienizado, por exemplo.
- Após quarentena, todos seriam testados para o coronavírus.
- Figurinos, adereços e cenários também seriam higienizados e isolados.
- Uso de máscara, luvas e limpeza constante de superfícies comuns.
- Teste de temperatura mais de uma vez ao dia.
- Cada ator teria seus próprios itens para maquiagem e cabelo, possivelmente descartáveis.
- No máximo 10 horas de trabalho por dia.
Todas essas medidas poderiam reabrir um set de gravações com o mínimo de segurança, mas outros entraves vêm à tona. Sindicatos de trabalhadores começam a discutir o acúmulo de funções. Outros alegam que os sacrifícios não valem o risco. E, por enquanto, tudo ainda está no campo das ideias.
— Nenhuma produtora pode responder isoladamente. Estamos unindo os sindicatos, as associações de produtores, técnicos e atores para formular conjuntamente um protocolo de retomada dos trabalhos. No mundo inteiro ainda está sendo definido como será esse protocolo. Já passamos por diversas crises na indústria cultural brasileira, no mundo também, e tudo avançou após a recuperação — explica a GaúchaZH Fábio Gullane, da Gullane Entretenimento, produtora do filme Que Horas Ela Volta? e da série Unidade Básica.
Países como Suécia, Dinamarca, Japão e Coreia do Sul já testam a efetividade das medidas de segurança com a reabertura dos estúdios de gravações. Mas ainda é cedo para saber se eles serão exemplos para o mundo ou trarão histórias de advertência.
Qualidade da produção
Caso o protocolo seja colocado em prática, filmes e séries que exigem muitos figurantes ou gravações externas seriam colocados na geladeira. Ficaria mais fácil a condução de produções de baixo ou médio orçamento. Um filme da franquia Vingadores, por exemplo, seria inviável. Mas 127 Horas (2010), centrado na história de um montanhista preso em uma fenda, poderia sair do papel. Quanto menos produção exigir, menos pessoas envolvidas.
Para o professor do curso de Comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) João Martins Ladeira, pesquisador nas áreas de televisão, convergência de mídias, comunicação e formação socioculturais, a indústria terá de inovar e aprender a fazer outros tipos de produções e de novas maneiras:
— Se de fato os sets forem algo perigoso, você vai ter que ter uma série de diretrizes, como o básico kit de álcool gel e máscaras. Mas tem outras coisas curiosas, como a alimentação das pessoas, a maneira de interação no ambiente de trabalho. É muito provável que a gente comece a usar mais produções que simulem efeitos especiais para mostrar coisas que a gente não vai poder gravar. E filmar o mais rápido possível para manter menos pessoas no set.
O futuro das novelas
No Brasil, que possui as novelas como carro-chefe do entretenimento na televisão aberta, ainda não há uma previsão de retomada de gravações. A expectativa é de que os estúdios retomem as atividade no segundo semestre, mesmo com restrições e possíveis mudanças no jeito tradicional de se fazer dramaturgia.
A Globo também está se debruçando na criação de um protocolo para seus estúdios, elaborado com a ajuda de infectologistas e outros profissionais da área de saúde. Roteiristas, produtores e diretores foram convocados a repensar narrativas que levem em conta possíveis limitações, como menos mão-de-obra e redução do contato físico.
Os chamados truques visuais, com diferentes posicionamentos de câmera, também podem passar a ser mais usados para dar a sensação de que dois personagens estão se beijando, mesmo que os lábios estejam bem longe um do outro.
— Pensei até em usar atores casados na vida real, como Taís Araújo e Lázaro Ramos, por exemplo. Eles fazem a câmera, se filmam e mandam para a montagem. E podem se beijar. Mas é uma coisa muito precária. (...) Até a invenção da vacina, alternativas vão ter que ser levadas em consideração, pensadas com esse critério, com mudanças no texto e na dramaturgia — reflete Jorge Furtado.
Manuela Dias, autora de Amor de Mãe, ainda pensa se irá colocar o coronavírus na trama a partir da retomada das gravações da novela. Há um desafio extra de não descaracterizar o perfil dos personagens que o público já está acostumado, como a amorosa Lurdes (Regina Casé) e o sedutor Sandro (Humberto Carrão).
" Nada vai mudar a Lurdes como ela é. Assim como a quarentena não mudou nossas essências. Mesmo que precisemos fazer ajustes para seguir o protocolo, acho que Lurdes seguirá sendo amorosa com os filhos", disse Manuela em entrevista ao portal Notícias da TV.
Em meio a tantas dúvidas, uma coisa é certa: assim que ocorrer o retorno aos sets, os olhos dos telespectadores vão começar a notar mudanças significativas na indústria do entretenimento.
— Não voltaremos ao normal, como era feito antes. Nada será como antes — projeta Furtado.