
Não houve mais filas na bilheteria, a pipoca deixou de ser vendida e os cartazes foram recolhidos. Ninguém mais pediu silêncio diante da conversa inconveniente. As poltronas estão vazias. Nenhum filme está sendo projetado. Por conta da pandemia da covid-19, os cinemas no Brasil estão fechados há um mês, desde 19 de março, uma quinta-feira atípica e histórica, quando não houve estreias no circuito. Lançamentos foram postergados ou realocados para as plataformas de streaming. As filmagens estão paralisadas. A situação é delicada para toda a cadeia do setor cinematográfico, que envolve exibidores, distribuidores, produtores e realizadores, entre outros profissionais.
O Filme B, portal especializado no mercado cinematográfico, destacou que no 19 de março a história do cinema no Brasil vivenciaria um momento inédito: pela primeira vez, não haveria nenhuma estreia semanal no circuito. Para o diretor do Filme B, Paulo Sérgio Almeida, a situação é calamitosa.
– Mais uma vez a indústria do cinema foi interrompida, sendo que já vinha sendo desvalorizada pelo governo federal. Grande parte dos cinemas brasileiros corre o perigo de fechar. Há um risco de fechar mil salas (o país conta com 3,5 mil).
Carlos Schmidt, proprietário do Guion Center, tradicional espaço de exibição com três salas na Cidade Baixa, em Porto Alegre, afirma que, mesmo que a reabertura dos cinemas ocorra em breve, a sustentabilidade da atividade de imediato não está garantida. Por isso, ele reavalia a continuidade do seu negócio:
– Este período de isolamento tem servido para mim como um doutorado para enfrentar a aposentadoria. Vínhamos com um desempenho excelente e que não experimentávamos há muitos anos. A persistir esta situação, não vemos outra saída senão o fechamento definitivo do cinema.
Programadora do CineBancários, com foco em títulos brasileiros e latino-americanos contemporâneos, Bia Barcellos aponta que o panorama do mercado de exibição e distribuição é uma incógnita nesta pandemia.
– Ninguém sabe como vai se comportar. Mas, na melhor das hipóteses, vai ser uma confusão, um horror. Todo o cronograma de estreias foi por água abaixo – lamenta Bia.
O baque da pandemia é sentido também nas grandes redes de cinema. Uma das maiores empresas do ramo no país, a Cinemark ofereceu duas opções aos seus funcionários: um plano de demissão voluntária ou um programa de qualificação, no qual o colaborador participa de cursos online e recebe até cerca de 80% de sua remuneração líquida.
A exibidora gaúcha GNC Cinemas optou pela suspensão temporária dos contratos da maioria seus funcionários pelo período de 60 dias. Para o diretor da rede, Ricardo Difini Leite, que também é presidente da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec), não é possível vislumbrar a volta à normalidade até junho.
– A maioria das empresas está tentando segurar o máximo suas despesas até a retomada das atividades, priorizando a manutenção de seu quadro de funcionários e o compromisso do pagamento da folha. Em alguns casos, se começou com férias coletivas ou aproveitando o momento para dar férias para quem poderia tirar – relata Difini.
Antes da pandemia, Difini relata que o primeiro bimestre da rede GNC este ano foi superior aos dois primeiros meses de 2019, em termos de bilheteria. As expectativas eram boas para o restante de 2020, com possibilidade de crescimento de público em relação ao ano passado.
– Infelizmente, é um semestre perdido – atesta. – Temos que acreditar que o segundo semestre será ótimo para compensar as perdas que estamos tendo agora.
Distribuidores
Em 2019, a distribuidora Vitrine Filmes teve o seu melhor ano em resultados e lançou fimes como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, que conquistaram prêmios expressivos no Festival de Cannes. Agora, as perspectivas são muito ruins, como ressalta o diretor da empresa, Felipe Lopes:
– Os filmes brasileiros precisam ter sua primeira exibição nos cinemas antes de ir para as plataformas de vídeo por demanda e canais de TV. Isso faz com que a maioria de nossos lançamentos tenha sua exploração econômica paralisada. É um cenário crítico, em especial para os exibidores.
Segundo Lopes, a Vitrine adiantou para as plataformas digitais lançamentos que estavam sendo exibidos no cinema, como Você Não Estava Aqui, de Ken Loach. O empresário menciona também que a Associação Nacional de Distribuidores Audiovisuais Independentes (Andai) busca diálogo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine) para que o fomento ao setor continue.
Com o oscarizado Parasita em seu catálogo, a Pandora Filmes vislumbrava com otimismo o ano de 2020. Diante do coronavírus, a distribuidora passa a focar nas plataformas digitais.
– Como todas as distribuidoras, a receita da Pandora passou a ser zero. Uma situação bastante preocupante. O que estamos pensando fazer a curto prazo é lançar nossos filmes diretamente em streaming – ressalta André Sturm, diretor e curador da Pandora Filmes.
Para a distribuidora Imovision, a quarentena será um período para retomar a produção de DVDs , com a previsão de disponibilizar títulos no formato ainda esse mês. .
– Se a pandemia demorar vários meses, receio que assistiremos a uma redução de complexos de salas em toda parte do Brasil, o que teria graves consequências não só para Imovision, mas para os pequenos distribuidores, já que as salas mas frágeis são justamente as de menores – diz Jean Thomas Bernardini, diretor e fundador da Imovision.
Bernardini ressalta que não dá para estimar o quanto a transação em vídeo sob demanda pode representar no caixa, mas garante que dificilmente compensará a perda de receitas em salas de cinema.
Depois da pandemia
Em março, na retomada das exibições nos cinemas da China (país em que a pandemia teve início no final do ano passado), a aposta foi em blockbusters, novos e antigos, para aquecer o mercado outra vez. No Brasil pós-pandemia, o retorno do público às salas deverá ser gradual, antevê o setor. É possível que por um bom tempos as pessoas tenham receio de sair de casa e dividir um espaço fechado com outras.
– Não achamos que o cinema vai abrir num dia e lotar. Temos que ter todo um esforço para que o público tenha tranquilidade para voltar aos cinemas sem riscos. Vai ser um processo gradual de recuperação. Talvez iniciar com restrições na capacidade de lugares, por exemplo. Não sabemos ao certo quando poderemos abrir. Mas não vai reiniciar a todo vapor – avalia Difini.
Bernardini especula que os primeiros meses depois da reabertura serão os mais difíceis:
– Até voltar ao patamar de antes do fechamento, os responsáveis pelos complexos de cinema terão que ter muito habilidade, além de faro para reduzir as despesas ao máximo, sem prejudicar a qualidade do atendimento ao cliente, que deve ser ainda mais exigente após drama vivido.
Felipe Lopes constata que será necessário lidar também com o fator medo, que pode afastar frequentadores. Assim, ele calcula que os primeiros meses serão de reaprendizado e análise diária de como será o comportamento do público e do mercado.
– Precisaremos de muita união no setor, junto com os parceiros da exibição, que estão muito afetados, além de uma comunicação direta e clara com o público – reflete o diretor da Vitrine Filmes.
Apesar do cenário incerto, Bia Barcellos está confiante:
– O recomeço será difícil para todos, mas o CineBancários é um projeto com 12 anos de existência, tendo se consolidado como uma importante sala de cinema de arte na Capital, e conseguirá superar as dificuldades decorrentes da pandemia.