Na primeira cena de Você Não Estava Aqui, que entra em cartaz nesta quinta-feira (27), Ricky Turner (Kris Hitchen) relata sua experiência com trabalhos na construção ao seu contratante, o brucutu Gavin Maloney (Ross Brewster): entende de preparação do solo, esgoto, escavação, betonagem, telhado, alicerce, pavimentação, sinalização, encanamento, carpintaria e, inclusive, covas. Cita também sua experiência com jardinagem.
Maloney o questiona sobre o motivo de ter saído desses empregos. Ricky justifica que prefere trabalhar sozinho agora, ser o seu próprio chefe. É quando Maloney lança a armadilha que permeia o filme:
— Aqui, você não é contratado, você embarca. Não trabalha para nós, trabalha conosco.
Você Não Estava Aqui é o longa mais recente do engajado diretor britânico Ken Loach. Aos 83 anos, o cineasta é conhecido pelo foco humanista de suas produções e pela atenção que dedica aos dramas da classe trabalhadora – como em Meu Nome é Joe (1998) e Pão e Rosas (2000). Em sua produção anterior, Eu, Daniel Blake (2016), ele conquistou sua segunda Palma de Ouro no Festival de Cannes (a primeira foi com Ventos da Liberdade, de 2006) ao retratar o desamparo de um idoso pelo sistema, narrando a saga de um carpinteiro que tenta receber o benefício social após sofrer um infarto.
Desta vez, destaca a precariedade das relações de trabalho a que se lançam, por necessidade ou opção, aqueles que buscam seguir na engrenagem produtiva. Com roteiro escrito por Paul Laverty, parceiro de longa data de Loach, Você Não Estava Aqui gira em torno da exaustiva rotina de dificuldades da família Turner, que vive em Newcastle, no nordeste da Inglaterra. A doce Abby (Debbie Honeywood) é a esposa de Ricky, que trabalha como cuidadora de pacientes doentes. O casal tem dois filhos: a caçula Liza Jane (Katie Proctor), uma pré-adolescente centrada e aplicada; e Seb (Rhys Stone), o garoto-problema que vive faltando à escola para pichar muros.
Visando proporcionar um futuro melhor para a família, Rick se torna motorista de uma agência responsável por entregas de empresas de comércio eletrônico. Para isso, o carro que Abby utiliza no trabalho é vendido para financiar uma van, o que obriga a mulher a se locomover de ônibus entre um paciente e outro.
Teoricamente, Ricky seria um motorista franqueado da agência, um autônomo. Na prática, ele precisa cumprir metas e horários sob o risco, por exemplo, de multa caso se ausente um dia. Não há garantias trabalhistas, plano de saúde ou sindicato. Ai de Ricky se ficar doente – não pode. Problemas familiares? Dê um jeito.
A jornada de Ricky é de 14 horas durante seis dias da semana, sem intervalo para descanso – tanto que um colega lhe entrega uma garrafa pet para urinar entre as entregas. Logo, o trabalho passa a interferir na sua relação com a família. Ausente na maior parte do dia, assim como Abby – que passa muito tempo se deslocando entre um paciente e outro –, os filhos ficam à deriva. Seb passa a se voltar cada vez mais contra o pai.
Com a necessidade do emprego e passando por turbulência em casa, Ricky se despedaça aos poucos. Contudo, segue arduamente na labuta, como o cavalo Sansão, do livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell, cumprindo humildemente o serviço pesado. Ele tem esperança de que o trabalho duro o recompense uma hora, que melhore as condições de sua família. Mas esse momento parece cada vez mais distante. Sufocado na função, parece mergulhar na areia movediça, da qual não consegue sair.
Em seu realismo social desesperançado, apresentado ao espectador de forma seca e direta, Loach faz uma crítica à fragilidade dos fundamentos desse modelo de relação de trabalho que cresce no mundo todo, sublinhando o custo físico e emocional dele decorrente.
Você Não Estava Aqui expõe uma particularidade no modus operandi que faz do trabalhador quase um escravo, não mais de um senhor, mas de si mesmo. Assim, a sentença ouvida por Turner no começo do filme acaba soando como aquela justificativa dissimulada de bullying: "Não estamos rindo de você, mas com você".