A mudança mais perceptível nos bastidores da Casa de Cinema de Porto Alegre entre o dia em que abriu as portas, há exatos 30 anos, e hoje talvez seja o nível a menos de decibéis das reuniões de segunda-feira. Criada por 13 jovens realizadores que se agruparam em uma cooperativa com quatro produtoras, então com 17 filmes e dezenas de prêmios na bagagem, a Casa de Cinema tem à frente, desde 2011, quatro sócios — os casais Jorge Furtado e Nora Goulart e Giba Assis Brasil e Ana Luiza Azevedo — e um currículo que soma, nessas três décadas, 21 longas-metragens, 14 médias, 31 curtas, 18 séries e 200 episódios para programas de TV. Vieram no embalo mais prêmios e o reconhecimento nacional pelo padrão de qualidade que estabeleceu fora do tradicional eixo de produção no centro do país.
— As nossas reuniões no começo eram calorosas assembleias em que se discutia de como pagar as contas no fim do mês aos rumos do cinema mundial — lembra Furtado.
O nome da produtora foi sugerido pelo publicitário amigo da turma Roberto Philomena, e o o uruguaio Roney Papa colaborou criando o logotipo da casa cenográfica. E foi em um desses debates condominiais na antiga sede da Avenida Lageado que foi votado o roteiro do projeto que apresentaria oficialmente a Casa de Cinema, em 1989: o curta-metragem Ilha das Flores, de Furtado, filme consagrado por público e crítica e vencedor de pilhas de prêmios, o mais vistoso deles o Urso de Prata no Festival de Berlim.
Reconhecida por suas produções para cinema e TV, a produtora traz em seu DNA o foco nesses dois segmentos. Ana Luiza, Furtado e o ex-sócio José Pedro Goulart trabalhavam na TVE com programas que buscavam inovar em linguagem e temática, como o antológico Quizumba. Giba, Carlos Gerbase e parceiros como Werner Schünemann já eram conhecidos do cinema à frente de produções referenciais como os longas Deu Pra Ti anos 70 (Giba e Nelson Nadotti), Coisa na Roda (Werner) e Verdes Anos (Giba e Gerbase).
— Na época, começava a se ter a percepção do audiovisual como uma linguagem única, algo que ainda levaria décadas para se consolidar como vemos hoje — diz Giba, responsável pela montagem das produções da Casa.
Ana Luiza complementa:
— Não queríamos fazer publicidade, queríamos fazer o cinema e a televisão andarem juntos. A produção para a TV encontrava preconceito de quem fazia cinema em razão de seu aspecto descartável, ia ao ar e acabou, enquanto o cinema representava a perenidade.
A consagração de Ilha das Flores abriu as portas da TV Globo. O pernambucano Guel Arraes, então responsável por produções inovadoras como a série Armação Ilimitada, percebeu que os gaúchos batiam na mesma sintonia criativa. A parceria começou em programas como Dóris para Maiores (1991) e Comédias da Vida Privada (1995-97) e em séries como Luna Caliente (1999). Furtado segue colaborando com a Globo, com criação e roteiro de séries como Mister Brau e Sob Pressão. A Casa de Cinema realizou no Rio Grande do Sul produções como Decamerão — A Comédia do Sexo e Doce de Mãe, que valeu a Fernanda Montenegro o prêmio Emmy Internacional de melhor atriz.
— Nossa ideia sempre foi ficar aqui para fortalecer o mercado e os profissionais locais — destaca Nora, responsável pela produção executiva dos projetos da Casa de Cinema.
Se nas primeiras parcerias com a Globo gravadas no Estado grande parte da equipe técnica vinha do Rio, lembra Ana Luiza, com o tempo os profissionais passaram a ser todos daqui.
— Sabíamos que era preciso investir na formação e qualificação de pessoal. Hoje, só trazemos de fora um diretor de fotografia, um técnico de som, por exemplo, em razão de alguma afinidade criativa, pois temos excelentes profissionais locais em todas as áreas.
O coletivo criativo-administrativo perdurou em sua primeira fase até 1991, quando transformou-se em um sexteto, com Furtado, Nora, Giba, Ana Luiza e outro casal, Carlos Gerbase e Luciana Tomasi, que deixou a Casa de Cinema em 2011 para tocar a Prana Filmes.
Nos anos 2000, a produção de longas ganhou corpo na produtora, com Tolerância (2000), de Gerbase, e Houve uma Vez Dois Verões (2002), de Furtado. Gerbase ainda fez, entre outros, Sal de Prata (2005). Furtado tem entre seu filmes o premiado O Homem que Copiava (2003), Saneamento Básico (2007), Mercado de Notícias (2014) e Quem É Primavera das Neves (2017), este codirigido por Ana Luiza, que fez sua estreia em longa com o laureado (2010).
Em uma estrutura com nove funcionários fixos que opera na Rua Miguel Tostes, as reuniões hoje são mais tranquilas, mas não menos intensas. A longevidade das amizades, parcerias e casamentos são combustíveis para manter a engrenagem azeitada. As decisões seguem sempre sendo coletivas.
— Desde o começo, sempre um ajuda a desenvolver o projeto do outro. Temos as discussões duras e sinceras que nossos relacionamentos permitem e que são fundamentais para continuarmos juntos, na sociedade e nos casamentos — brinca Ana Luiza.
Espírito gregário marca identidade da produtora
Algo que permanece imutável nas engrenagens da Casa de Cinema é o espírito gregário, que pode ser ilustrado no estreito contato que a produtora tem com novos realizadores e profissionais de cinema. Tanto em parcerias formais quanto na facilidade de contatos para viabilização de projetos e também no emprego direto de talentos egressos das faculdades de cinema do Estado — Giba é professor do curso na Unisinos.
— Começamos a trabalhar nos últimos anos com jovens que chegam com uma sólida formação teórica dos cursos de cinema. Nós temos a experiência da realização, e eles têm a vontade de aprender na prática. A gente precisa se renovar sempre. E a primeira experiência do nosso núcleo criativo foi um sucesso _ explica Furtado, referindo-se ao grupo de criação da Casa de Cinema responsável por projetos como o documentário Cidades Fantasmas, de Tyrell Spencer, eleito o melhor longa nacional do prestigiado festival É Tudo Verdade em 2017, e seu próprio novo longa, Rasga Coração, que acaba de rodar em Porto Alegre.
O mercado audiovisual no Brasil, em que pesem as turbulências econômicas e políticas, mostra robustez. A Casa de Cinema vislumbrou, já em 1990, quando a extinção da Embrafilme pelo governo Collor paralisou a produção cinematográfica, o potencial das realizações para a TV. Além da Globo, a lista de trabalhos ao longo dos anos apresenta projetos para Channel 4 (Inglaterra), ZDF (Alemanha), HBO (América Latina), TNT (América Latina), RBS TV, Canal Futura, Canal Brasil e Canal Curta, entre outros veículos.
— O caminho de nossa produção é duplo. Lançamos propostas e também recebemos projetos. Quando um projeto nasce, vemos como será a forma de produzi-lo, via editais, coproduções, parcerias com os canais de TV — explica a produtora Nora Goulart.
Segundo Nora, a viabilização de projetos envolve a escolha do melhor suporte de veiculação, hoje ampliado com as demandas por conteúdo nacional das TV por assinatura e plataformas digitais. Doce de Mãe, por exemplo, nasceu como um telefilme para a Globo e foi tão bem recebido que se transformou em seriado. Já Real Beleza, longa de Furtado exibido nos cinemas em 2015, teve origem em uma proposta de série de TV que não foi adiante.
Do primeiro núcleo de criação da Casa de Cinema, implantado via um edital da Ancine — um próximo já está em formação —, também saíram produções como A Copa Passou por Aqui, que recrutou diretores de todo o Brasil para realizar os 11 episódios exibidos no canal Sport TV. Ainda na TV paga, para o Canal Curta!, foi direcionada a série Grandes Cenas, dirigida por Ana Luiza e Vicente Moreno, que entrevistaram renomados diretores brasileiros e estrangeiros sobre detalhes da realização de seus filmes mais marcantes.
— Quando sugiro um projeto para TV, costumo pensar na TV aberta, em razão da maior abrangência. Sei que Sob Pressão pode encontrar receptividade para ser realizado pela Globo, e também sei que Quem É Primavera da Neves, que fala de uma tradutora portuguesa, tem o perfil de um canal como a GloboNews — explica Furtado.
— A característica da Casa de Cinema é a de agregar pessoas. Os cursos de cinema promoveram uma grande renovação de profissionais. A gente tem uma estrutura solidificada, que sabemos como é difícil de se ter no começo. Queremos que outras pessoas possam contar com nossa estrutura e experiência, como foi o caso do Davi Pretto com Rifle — destaca Ana Luiza, citando o jovem diretor gaúcho que teve seu longa selecionado para o Festival de Berlim 2017.
Para o cinema, entre os longas a caminho, estão o novo de Ana Luiza, Aos Olhos de Ernesto, a ser rodado entre o Brasil e Uruguai em 2018, e duas parcerias da Casa de Cinema, ambas já em fase de montagem, Baleia, de Esmir Filho, e Morto Não Fala, de Dennison Ramalho.
Veja o teaser de Rasga Coração, próximo filme de Jorge Furtado, nos cinemas em 2018
Veja o teaser de Morto não Fala, de Dennison Ramalho, produção da Casa de Cinema