Tyrell Spencer tinha 17 anos quando deixou Uruguaiana para morar com o irmão mais velho em Porto Alegre e encontrar seu rumo nos estudos. Gostava muito de desenhar, e na família acreditavam no seu potencial para seguir carreira nas artes visuais. Com bolsa do Prouni, ingressou na faculdade de Cinema da Unisinos, pensando, por paixão e vocação, primeiro no campo da animação.
Encurtando a história, Tyrell, aos 30 anos, depois de apresentar dois curtas-metragens de ficção, Antônia e Brisa, conquistou no sábado passado um prêmio dos mais relevantes do cinema brasileiro: seu primeiro longa-metragem, o documentário Cidades Fantasmas, venceu a mostra nacional do É Tudo Verdade, principal festival voltado ao gênero na América Latina.
Nesta sexta-feira e no próximo sábado, serão as primeiras sessões do filme em Porto Alegre, às 20h, na Cinemateca Capitólio, com entrada franca, dentro da mostra itinerante do É Tudo Verdade, que voltou a ser realizada na Capital depois de 10 anos (veja no quadro outros títulos da programação).
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– Tinha como objetivo realizar meu primeiro longa até os 30 anos, mas não esperava um reconhecimento deste porte. A ficha ainda não caiu – diz Spencer, que traz no nome e sobrenome o legado dos bisavós paternos ingleses.
Com roteiro de Carolina Silvestrin, mulher e sócia do diretor na produtora Galo de Briga Filmes, e André Bittencourt, Cidades Fantasmas apresenta, no tom de um melancólico ensaio visual, um passeio pelas ruínas de quatro lugares que sobrevivem apenas em escombros, velhas fotografias e nas memórias de antigos moradores: Humerstone, no Chile, cidade erguida em torno de uma mina de salitre desativada nos anos 1960; Armero, na Colômbia, povoado atingido pela erupção de um vulcão que matou mais de 20 mil pessoas, em 1985; a brasileira Fordlândia, no Pará, construída nos anos 1920 pela montadora americana Ford como sede de trabalhadores durante o ciclo da borracha; e Epecuén, na Argentina, colônia de férias à beira de um lago que amanheceu tomada pelas águas numa manhã de 1985, em razão de uma desastrosa obra de canalização.
– Cresci ouvindo aquelas grandes histórias que o avô de um amigo contava nos churrascos. Sempre achei interessante essas narrativas orais e seus arcos dramáticos detalhados. A ideia do Cidades Fantasmas nasceu de um processo coletivo de contar essas grandes histórias com um foco em pessoas que lutavam para preservar suas memórias e sua dignidade depois de perderem os lugares em que viviam. Fizemos primeiro um curta em Humbertsone, como piloto, em 2014. Depois apresentamos o projeto no núcleo de criação da (produtora) Casa de Cinema de Porto Alegre. A Globo Filmes mostrou interesse, e daí surgiram as propostas de um longa para o canal Globo News e de uma série para o Canal Brasil.
Durante a faculdade, Spencer foi depurando sua formação cinéfila e conheceu três documentários que lhe foram fundamentais em Cidades Fantasmas: Noite e Neblina (1956), do francês Alain Resnais, Jogo de Cena (2007), do brasileiro Eduardo Coutinho, e Nostalgia da Luz (2010), do chileno Patricio Guzmán:
– São meus filmes referenciais no movimento da câmera e na dramaturgia alcançada com os depoimentos.
A série, ainda sem data de exibição, explica Spencer, ganhará mais quatro cidades, todas no Brasil: Vila de Minas do Camaquã (RS), Ararapira (PR), Cococi (CE) e Vila do Ventura (BA).
– Por ser apresentada em curtas individuais, a série tem outro ritmo, menos ensaístico. E mesmos essas cidades vistas no longa serão abordadas por outros aspectos. Em Armero, por exemplo, falamos do tráfico de crianças que perderam pais e parentes. Entre o começo do projeto e sua consagração no É Tudo Verdade correu exato um ano, período que envolveu pesquisas prévias de personagens e locações e gravações.
Embora o planejamento logístico rigoroso, o documentário incorporou imprevistos, diz Spencer:
– O senhor radialista que dá um emocionante depoimento no episódio sobre Epecuén nos procurou quando estávamos ali gravando outras entrevistas previamente planejadas, e estas acabaram ficando de fora.
Programação É Tudo Verdade
Perón, Meu Pai e Eu
(Argentina, 2017, 80min), de Blas Eloy Martínez. O diretor recupera uma uma histórica entrevista que seu pai, o escritor e jornalista Tomás Eloy Martinez realizou, há 45 anos, com Juan Domingo Perón. Sexta-feira, às 16h30min;
Permanecer Vivo: Um Método
(Holanda, 2016, 70min), de Erik Lieshout. O músico Iggy Pop extrai espelha sua vida em um provocativo ensaio do escritor Michel Houellebecq. Sexta-feira, às 18h. Reprisa domingo, às 18h;
Los Ninos
(Chile, 2016, 83min), de Maite Alberdi. Grupo de amigos com síndrome de Down, na faixa dos 50 anos depara com preconceito e entraves legais. Vencedor da mostra latino-americana. Sábado, às 16h30min;
Comunhão
(Polônia, 2016, 72min), de Anna Zamecka. Menina de 14 anos que cuida de um pai relapso e de um irmão autista encara um processo de amadurecimento. Vencedor da mostra internacional. Sábado, às 18h;
Abacus: Pequeno o Bastante para Condenar
(EUA, 2016, 88min), de Steve James. O processo judicial contra família de banqueiros chineses acusada de fraude. Domingo, às 16h30min;
O Poder de Solovkí
(Rússia, 1988, 93min), de Marina Goldovskaya. Antigos prisioneiros de um campo de trabalho na URSS relembram suas vidas no local 60 anos depois. Domingo, às 20h