Jorge Furtado encontrou o tema para seu mais recente filme em um livro. Para ser mais específico, na folha de rosto de uma edição antiga de Alice no País das Maravilhas, numa tradução assinada por Primavera das Neves. Curioso a respeito da sonoridade de um nome com cara de pseudônimo, Furtado escreveu em 2010 um post a respeito no blog que mantém na página da Casa de Cinema de Porto Alegre:
– Achei muito impressionante que só tivesse uma citação quando procurei no Google. Sempre tem algumas, muitas ou nenhuma, mas só uma? E é um nome muito bonito.
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A postagem de Jorge recebeu alguns retornos, ele os relatou em nova publicação e talvez a coisa ficasse por isso se não tivesse recebido, três anos depois, uma mensagem de Eulalie Ligneul, amiga de infância de Primavera das Neves, que forneceu novos elementos sobre a identidade da personagem que a esta altura Furtado já achava tão fascinante como o nome. Foi aí que nasceu de fato o documentário Quem é Primavera das Neves, co-produção da Casa de Cinema de Porto Alegre com Globo Filmes e GloboNews, que estreia hoje em circuito nacional:
– Depois que recebi a mensagem da Eulalie, vi que era uma história que se abria. Normalmente, o jornalismo e o documentário partem de descobrir mais de alguém que já se conhece. Fiz o percurso contrário: um documentário sobre uma pessoa que eu não tinha a menor ideia de quem era.
Portuguesa de nascimento, filha de um anarquista português e de uma militante socialista espanhola, Primavera Ácrata Saiz das Neves nasceu em Portugal em 1933, e se mudou para o Brasil aos nove anos, trazida pelos pais que fugiam da ditadura de Salazar. Voltou para Portugal aos 18 anos e se apaixonou pelo jovem militar Manoel Pedroso. Pouco depois de se casarem, Pedroso participou de uma fracassada insurreição militar contra o salazarismo e se exilou na Embaixada do Brasil em Lisboa, com Primavera e a filha recém-nascida do casal. Por intervenção do Itamaraty, Primavera voltou ao Brasil com a filha.
Quem é Primavera das Neves, dirigido por Furtado e por Ana Luiza Azevedo, é construído de forma a recontar a curiosidade despertada pela personagem e recuperar a trajetória de uma mulher que falava seis idiomas, traduziu mais de 80 livros, escrevia poesias (que nunca publicou) e morreu muito jovem, em 1981, aos 47 anos. Para isso, costura os depoimentos de Eulalie, da artista plástica Anna Bella Geiger, outra amiga de infância de Primavera, e de Pedroso. Ao mesmo tempo, intercala cenas de Jorge explicando a sua busca por Primavera para a atriz Mariana Lima, que lê trechos de obras traduzidas e poemas originais de Primavera:
– Eulalie me entregou os poemas dela, e eu os achei ótimos. Pensei: é uma poeta inédita, tenho de ter os poemas dela no filme. Foi um processo também de documentar o que estava descobrindo.
Como Jorge aparece em partes substanciais do filme, parte da "divisão de trabalho" entre ele e Ana Luiza foi que ela o dirigiria em cena. Jorge ouve os depoimentos sobre Primavera e depois reconstrói seus passos, no Brasil e em Portugal. Mais do que um filme sobre poesia e tradução, o que também é, Primavera das Neves é um filme que parte de um preceito caro a muitas das boas biografias, a de que os entrecruzamentos de algumas vidas são boa matéria-prima para reconstituir a história de um período.
– A mãe dela foi uma sufragista espanhola, lutou na Guerra Civil, o pai era anarquista, o marido dela foi um dos fundadores do partido socialista em Portugal. A vida dela vai contando a história do século. Através dela se pode contar a história de exilados, das ditaduras. Ela fugiu de ditaduras a vida toda, e nem era uma pessoa política – diz Jorge.