"Agora sim vamos fazer cinema". Para a gurizada que militava no Super-8 espelhando aventuras e dramas urbanos em autorretratos geracionais, este era o sentimento de realizar um longa-metragem em 35mm no Rio Grande do Sul do começo da década de 1980. Era uma façanha, era colocar os tênis em um território até então ocupado pelas botas do cinema campeiro.
Foi esse passo adiante que fez Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil aceitarem o convite para dirigir Verdes Anos (1984), marco da cinematografia gaúcha que será celebrado nesta terça-feira, em razão dos 30 anos de seu lançamento. A sessão especial, às 20h, na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro, reunirá realizadores e equipe, com entrada franca, mediante retirada de senhas a partir das 19h30min. O evento integra a programação de 15 anos de inauguração do tradicional espaço cinéfilo da Capital.
Gerbase e Giba já faziam cinema. E muito bem. Giba havia dirigido com Nelson Nadotti Deu Pra Ti Anos 70 (1980), aclamado balanço afetivo da geração que amadureceu à sombra da ditadura militar. Gerbase recém havia apresentado o drama introspectivo Inverno (1983). Esses dois Super-8 estão entre os melhores e mais importantes longas já feitos no Estado.
- O Sérgio Lerrer, que fazia Super-8 com a gente, abriu uma agência de publicidade e pensou em produzir cinema numa escala mais profissional. Daí surgiu o projeto do Verdes Anos - diz Giba. - Mas, naquele momento, eu achava que seria retrocesso voltar a um tema já abordado no Deu Pra Ti... Estava me achando mais adulto (risos).
Gerbase complementa:
- Verdes Anos não nos interessava tematicamente, mas sim por essa perspectiva profissional de ser um longa em 35mm. Foi um esquema que nasceu morto, feito como muito sacrifício. Mas foi superlegal porque todo sabia qual era nosso limite.
Filmado em Porto Alegre e em São Leopoldo entre 20 de agosto e 14 de setembro de 1983, Verdes Anos teve seu orçamento de US$ 15 mil viabilizado por um sistema de cotas, equivalente ao que agora se chama crowdfunding. Para filmar os 91 minutos da história, a equipe contou com apenas 35 latas de negativos com quatro minutos de duração. Cada cena era muito ensaiada antes de a câmera rodar. Economizavam até nos segundos da claquete.
Giba lembra uma observação do referencial crítico de cinema Jairo Ferreira:
- Ele escreveu que o Deu pra Ti... era um Super-8 feito como 35mm, e o Verdes Anos era um 35mm feito como Super-8.
Trama destacou questões políticas
Com roteiro de Álvaro Teixeira, adaptado do conto homônimo de Luiz Fernando Emediato, Verdes Anos se passa em 1972, numa cidade do interior gaúcho. Às vésperas do grande evento local, o baile para eleger a rainha do colégio Cruzeiro do Sul, uma turma de amigos do terceiro ano científico vive aventuras recorrentes das crônicas juvenis, como o primeiro amor, conflitos familiares, paixões urgentes e rivalidades escolares. Na trama central, o boa pinta Nando (Werner Schünemann) gosta da popular Soninha (Luciene Adami), que se acha a tal e flerta com todo mundo. Teco (Marcos Breda), o melhor amigo de Nando, arrasta asa para Rita (Marta Biavaschi), prima de Soninha, que se encanta por Nando.
Em meio à ciranda afetiva e às situações determinantes do rito de passagem da adolescência para a vida adulta, Verdes Anos apresentava como estofo transgressor componentes políticos e comportamentais. Realizado nos estertores da ditadura militar, o filme faz referência a presos políticos, tortura, desaparecidos, exilados e corrupção - nesse núcleo, destaca-se a professora Bárbara (Haydée Porto). Também são fortes - e divertidos - o discurso e o ativismo feminista do grupo de garota liderado pela inflamada Marieta (Xala Felippi).
O roteiro transita entre o drama, o romance e o humor, amarrando com competência tramas secundárias até o emotivo desfecho, quando Cândida (Marcia do Canto) entra em cena para confortar o desolado Nando. A história, o entusiasmo do jovem elenco e as soluções criativas de Giba e Gerbase para contornar a falta de grana foram ao encontro do tino comercial de Sérgio Lerrer.
Verdes Anos estreou em Porto Alegre, no Scala e no Coral, em 25 de maio de 1984, e o público se identificou na tela e abraçou o filme. Como destacou um anúncio de jornal da época, foi um fenômeno. Em meio à empolgação do reclame - "estrondoso sucesso", "espetacular", "recorde absoluto de bilheteria", "nova obra-prima gaúcha" -, um alerta imposto pela censura, que classificou o filme para maiores de 16 anos: "linguagem vulgar e grosseira". O filme, segundo os realizadores, somou 136 mil espectadores no Estado, cem mil em Porto Alegre, número que é expressivo para um filme brasileiro que hoje tenha distribuição nacional.
Mas Verdes Anos não cruzou o Mampituba para além de algumas exibições em festivais. Primeiro, por não haver nenhum recurso para promover o filme além do boca a boca entusiasmado:
- Uma coisa era divulgar o filme com filipeta na Praia da Cal, em Torres. Outra era fazer isso em Copacabana - brinca Gerbase.
Werner Schünemann lembra os dias de fama repentina como astro do cinema:
- Foi um sucesso de ser parado na rua para dar autógrafo. Era inacreditável a sensação de ver nosso filme em cartaz nos cinemas em que a gente via filmes norte-americanos. Era nós ali, falando com aquele sotaque da calçada da Osvaldo Aranha. E a gente nem falava daquele jeito carregado (risos).
- Em um festival, um crítico veio nos dizer que tinha gostado, mas tinha de passar com legenda, não era por causa do som ruim, mas porque não conseguia entender os diálogos.
Verdes Anos teve sua circulação restrita também por uma questão legal. A ótima trilha sonora internacional, com sucessos de nomes como Santana, James Taylor, Badfinger e Roberta Flack, foi utilizada sem o pagamento dos devidos direitos autorais. Sem a regularização, o filme não teve emitido o Certificado de Produto Brasileiro (CPB), documento obrigatório para poder ser lançado em vídeo, DVD e ser exibido na televisão.
- Não havia dinheiro para isso - afirma Giba, que foi o integrante da equipe mais bem pago no rateio final, por ter trabalhado também na dublagem, ficando com o equivalente em pilas a US$ 140. - Com o que ganhei no Deu Pra Ti... eu vivi dois anos.
Nos bastidores de Verdes Anos:
Verdes Anos foi apresentado no Festival de Gramado em 9 de abril de 1984. Ganhou o Prêmio Revelação e teve boa recepção da crítica local e nacional.
Luis Fernando Verissimo escreveu em ZH: "Você vai ver Verdes Anos pela primeira vez pra dar uma força. Afinal, é uma gurizada, gente daqui, pouco dinheiro, essas coisas. Você ri pela primeira vez de boa vontade. A segunda de surpresa. A terceira de entusiasmo. As carências da produção são evidentes, mas com dez minutos de filme você está entregue ao seu charme. Mas você vai gostar mesmo é na segunda vez.
As canções que abrem e fecham o filme são, respectivamente, Verdes Anos, de Nei Lisboa e Augusto Licks, e Armadilha, de Nelson Coelho de Castro e Dedé Ribeiro. Armadilha é do disco Juntos, lançado por Nelson em 1981. Verdes Anos foi adaptada por Nei ao filme. Giba explica: "A música já existia, o Nei e o Augusto Licks tocavam em shows e tinham gravado uma demo que circulava entre os amigos. Mas ela se chamava Rock'n'Roll Bye Bye. A gente estava querendo usar no filme, pela qualidade da canção, por causa do Nei, pelo clima, por falar em "foi lá por 72", exatamente o ano em que a história se passava. Mas tinha um problema. A letra dizia: "Foi céu aberto, 13 anos, pouco mais que nada pra pensar..." Eu resistia a usar porque os personagens tinham entre 16 e 17 anos, uma situação existencial totalmente diferente de quem tem 13 anos. Aí a Martinha Biavaschi sugeriu: "Mas podia trocar 13 anos por verdes anos". A gente sugeriu e o Nei topou. E até mudou o título da música, quando gravou pro disco (Noves Fora, de 1984).
Depois de Verdes Anos, Gerbase dirigiu curtas e os longas Tolerância (2000), Sal de Prata (2005), 3 Efes (2007) e Menos que Nada (2012). Com Giba e outros integrantes da equipe de Verdes Anos, fundou a Casa de Cinema de Porto Alegre. Hoje é sócio da Prana Filmes.
Giba não voltou à direção. Tornou-se um dos mais premiados montadores do cinema brasileiro, assinado a edição de curtas e longas como O Homem que Copiava (2003), de Jorge Furtado. É sócio da Casa de Cinema.
Werner Schünemann direcionou sua carreira para a atuação. É contratado da Globo, onde estrelou sucessos como a minissérie A Casa das Sete Mulheres, além de novelas.
Luciane Adami vive em São Paulo, onde seguiu carreira de atriz. Marcia do Canto hoje está mais voltada para o trabalho na área de pedagogia. Marcos Breda é ator de cinema, TV e teatro. Marta Biavaschi é produtora de cinema.
O fictício colégio Cruzeiro do Sul teve como locação a escola de mesmo nome, no bairro Teresópolis, em Porto Alegre.
- A gente ia do Bom Fim até lá de ônibus de linha - lembra Werner.
Com cenas filmadas em pleno inverno, o longa colocou atores em alguns apertos, segundo Werner:
- Fazia dois graus naquela cena em que eu entro numa fonte dágua. Jamais esquecerei o frio que passei.
Sérgio Lerrer havia produzido, antes de Verdes Anos, dois curtas-metragens importantes daquele ciclo: No Amor (1982), de Nelson Nadotti, e Interlúdio (1983), de Giba e Gerbase. No mesmo ano de 1984, em novembro, apresentou outro longa em 35mm, Me Beija, dirigido por Werner Schünemann. Posteriormente, radicou-se em São Paulo.
Segundo Sérgio Lerrer, Verdes Anos nasceu como Super-8 dirigido por ele, que teve o material filmado velado no laboratório: "Mais adiante, retomei como projeto de longa em 35mm, mas a grana era supercurta e preferi me concentrar na produção. Convidei o Giba e o Gerbase, assim como o Pedro Santos, que seria o ator principal. Mas ele não pode vir e, na última hora, entrou o Werner".
Verdes Anos tem três cópias 35mm, uma arquivada na Cinemateca Brasileira e outras duas em posse dos realizadores, que têm ainda uma cópia digital de baixa resolução. Uma versão completa do filme pode ser encontrada no YouTube.
Contraponto do produtor Sérgio Lerrer
Após a publicação desta reportagem, o produtor de Verdes Anos, Sérgio Lerrer, enviou a Zero Hora informações sobre o bastidores da realização do filme (acrescentadas no texto acima) e o seguinte contraponto sobre o lançamento do longa fora do Estado:
"O filme foi sim lançado fora do Estado por mim. Foi lançado em Santa Catarina com grande sucesso. Foi lançado no Paraná, em Curitiba e diversas cidades. Foi lançado no Rio de Janeiro em quatro salas. Aliás, sim, foram distribuídos durante um final de semana inteiro folhetos nas praias de Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra. Foi uma folia e tanto. Foi feito um extraordinário esforço de lançamento fora do Estado, que foi interrompido pela falta de dinheiro para investir na frente, pela falta de retorno financeiro por parte dos exibidores e pela quebra de concordância entre o que eu tentava fazer sobreviver na carreira do filme e que os diretores e outros participantes ambicionavam com a obra. O lapso se dá porque o projeto do filme era de sucessivas etapas, e os diretores nem sempre participaram de todas ativamente."
Confira galeria de fotos do filme: