Depois de João Carlos Castanha, Dione Avila de Oliveira. Responsáveis pelo filme que demarcou o território a ser ocupado por uma das mais promissoras gerações do cinema gaúcho, o diretor Davi Pretto e a produtora Tokyo Filmes migraram dos cenários urbanos de Castanha (2014) para a vastidão opressora do pampa empobrecido em Rifle (2016), seu segundo longa-metragem, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros após exibições em festivais como os de Berlim e Brasília.
Dione interpreta um personagem de mesmo nome na trama sobre um jovem errante que trabalha como peão em uma estância provavelmente da região de Dom Pedrito (sabe-se apenas que ele é órfão e que vem das bandas de Vacaíqua, distrito do município localizado na fronteira com o Uruguai). Quando um empresário o aborda perguntando se as terras dessa estância estão à venda, e ele se dá conta de que a transferência da propriedade pode ter como consequência a sua dispensa do lugar que o acolhera, reage de maneira violenta.
O rifle referido no título é tão personagem da trama quanto a paisagem – Dione parece ter a personalidade moldada pelo ambiente no qual está inserido e só consegue estabelecer uma comunicação efetiva, por assim dizer, com a arma que empunha. Trata-se de uma releitura contemporânea do mito do gaucho forjado pelo amálgama das culturas ibérica e indígena mas, acima de tudo, pela luta pela subsistência em um lugar que não é o seu – característica de quem não se estabelece em um território fixo.
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A "versão rural" da trama de especulação imobiliária, tema central do badalado Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, é na verdade apenas o ponto de partida de Rifle. Pretto e Richard Tavares, autores do roteiro, estão mais interessados no estudo das motivações de um personagem introspectivo que age aparentemente por impulso e de maneira inconsequente. A dupla se sai bem no desafio graças à boa interpretação do ator estreante (cooptado na região das filmagens) e aos planos longos e silenciosos, que dão o tempo suficiente para o espectador entender a lógica possível de seus atos.
Dione é uma espécie de Vingador Silencioso (como o do faroeste de Sergio Corbucci, de 1968), meio Travis Bickle (o icônico protagonista de Taxi Driver, de Martin Scorsese, 1976), cuja história espelha a própria natureza da violência. Faz sentido, assim sendo, comparar Rifle a ensaios contemporâneos sobre o tema, caso de Marcas da Violência (de David Cronenberg, 2005), que carrega esse pressuposto no título original: A History of Violence. Não são à toa as referências a abigeato contidas na trama – e as respectivas imagens de carcaças de animais abatidos, cuja função dramática é semelhante à das sequências oníricas de Castanha, ou seja, conduzir as sensações do público para além do que a história apresenta objetivamente.
A fotografia de Glauco Firpo, opaca, desidratada, ajuda a demarcar o tipo de pampa no qual Dione se move. Os ambientes internos escancaram ainda mais a simplicidade da vida naquele território – méritos, em grande parte, da direção de arte, também assinada por Richard Tavares. Mas o que de fato potencializa o impacto das imagens de Rifle, por mais paradoxal que possa parecer, é o desenho de som de Tiago Bello, que incorpora o estrondo dos tiros e os ruídos discretos da natureza de modo orgânico, na medida para conduzir a fruição. Preste atenção, por exemplo, na primeira sequência do filme, quando Diones raspa com uma faca o tronco de uma árvore e ouve-se uma mistura dos barulhos de pássaros, vento e um riacho, tudo em um volume crescente, a revelar toda a perturbação do personagem.
Rifle foi o primeiro projeto de longa-metragem de Davi Pretto e da Tokyo. Foi atropelado por Castanha, que por contingências de produção e financiamento acabou finalizado antes. Fez todo o sentido que o marco de um novo cinema gaúcho tivesse sido um filme urbano. Mas Rifle mantém a qualidade, além de atualizar um tipo tão caro ao imaginário local. Atualizar e, fundamentalmente, desmistificar – ainda mais do que o faz Artigas (de César Charlone, 2011), porque traz esse tipo para mais perto do espectador.
RIFLE
De Davi Pretto
Drama/faroeste, Brasil, 2016, 88min.
Estreia nesta quinta-feira (3/8). Em Porto Alegre, pode ser visto na Cinemateca Capitólio, no CineBancários e no Espaço Itaú.
Cotação: muito bom.