Peça basilar da dramaturgia brasileira, definida por Nelson Rodrigues como "fascinante obra-prima", Rasga Coração chegará aos cinemas no longa-metragem homônimo que o diretor Jorge Furtado roda em Porto Alegre. Escrita por Oduvaldo Vianna Filho entre 1972 e 1974 – o autor concluiu o espetáculo pouco antes de morrer de câncer no pulmão, aos 38 anos –, Rasga Coração é um manifesto político e existencial que passa em revista momentos emblemáticos da história do Brasil por meio do personagem Manguari Pistolão. Combativo militante comunista na juventude, o protagonista encara na maturidade momentos de crise e reflexão, com seu conformismo contrastando com a rebeldia do filho.
No texto original, a ação se passa em três períodos ao longo de 40 anos, retrocedendo da década de 1970 até o Estado Novo de Getúlio Vargas. Censurada à época da ditadura militar, Rasga Coração foi liberada e encenada pela primeira vez em 1979, no Teatro Guaíra, em Curitiba.
– Vianninha escreveu uma obra-prima que fala de temas eternos: morte, sexo e política. São os assuntos mais interessantes que existem – diz Furtado.
Manguari Pistolão é vivido no filme por Marco Ricca, com Drica Moraes no papel de Nena, sua mulher, e Chay Suede como Luca, filho do casal. Em 1979, Manguari tem o rosto de João Pedro Zappa, com Duda Meneghetti fazendo a jovem Nena. O elenco conta ainda, no presente, com Luisa Arraes (Mil, namorada de Luca) e, no passado, com George Sauma (Lorde Bundinha, tio de Manguari) e Nelson Diniz (666, pai do protagonista).
Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, que em dezembro agora celebra seus 30 anos de fundação, em parceria com a Globo Filmes, Rasga Coração tem orçamento de R$ 3 milhões e previsão de lançamento para setembro de 2018. No roteiro que assina com Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, Furtado localiza a ação em dois tempos: 1979, ano em que a anistia política permitiu o retorno ao Brasil dos exilados políticos, e 2013, quando o país vivenciou a volta às ruas dos calorosos protestos protagonizados pelos estudantes.
– As manifestações de 2013 foram determinantes para o golpe parlamentar de 2016 – destaca Furtado. – O processo começou com reivindicações justíssimas dos estudantes e logo foi dominado e capitalizado pela direita.
Há muito tempo eu queria adaptar Rasga Coração. Quando a situação política no Brasil degringolou, achei o momento oportuno. Parece que o Vianninha escreveu esse texto hoje.
Este será o primeiro longa do diretor não realizado a partir de um texto seu:
– O roteiro é fiel ao texto original. É um desafio. Quando trabalho com meus textos, posso fazer mudanças no set. Mas não tem o que mudar nessa que considero uma das mais bem escritas peças do Brasil, junto com Vestido de Noiva (de Nelson Rodrigues) e O Auto da Compadecida (de Ariano Suassuna).
O diretor ressalta, porém, algumas mudanças feitas para destacar a contemporaneidade de Rasga Coração:
– Além de sintetizarmos a trama em dois tempos, foram precisos alguns ajustes. A transgressão que era ter um cabelo comprido nos anos 1970, no presente do filme está representada num rapaz que usa saia e pinta as unhas. A figura da mãe é menos deprimida e mais ativa, e mostramos o protagonismo das jovens mulheres negras e dos gays à frente das ocupações das escolas.
Rasga Coração começou a ser filmado em Porto Alegre em 8 de novembro. A última diária será no dia 4 de dezembro. O principal cenário da trama é o apartamento de Manguari em Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, minuciosamente erguido – dos cômodos e corredores aos dois falsos elevadores e a fachada – pelos diretores de arte Fiapo Barth e William Valduga na antiga capela do Campus da PUC de Viamão. Encerrado os trabalhos do núcleo de 2013, o local será redecorado para abrigar os personagens de 1979. A reportagem de GaúchaZH acompanhou uma tarde de trabalho da equipe em Viamão, no dia 16, quando foi registrada uma discussão em família a respeito do futuro profissional de Luca. A estrutura dramatúrgica da peça é ressaltada em diálogos de longa duração, registrados em diferentes ângulos pelo diretor de fotografia Glauco Firpo. As falas de Rica e Drica, levadas até o fim sem interrupções, entusiasmavam Furtado a cada "corta" seguido de elogios ao elenco.
– Essas cenas mais longas valorizam a fala. Não sou o tipo de diretor que gosta de forçar um ator para tirar dele o seu melhor, por isso prefiro sempre trabalhar com os melhores, dos quais já sei o que esperar.