Cerca de 30 anos antes de Malcolm X defender a representatividade negra nos EUA, Mário de Andrade transmitia valores similares em seus textos. Essa é uma das constatações apresentadas por Emicida em AmarElo – É Tudo pra Ontem, documentário-show que estreia nesta terça-feira (8) na Netflix. O longa-metragem dirigido por Fred Ouro Preto promove uma verdadeira aula do rapper, de forma didática e conectada com a história, sobre heróis negros brasileiros que foram apagados pelo passado.
Antes de falar do filme, é preciso destacar a importância de AmarElo, disco lançado pelo artista em outubro do ano passado. Em novembro deste ano, venceu o Prêmio Multishow na categoria Álbum do Ano e, dias depois, conquistou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa. As duas distinções vieram para coroar o trabalho, que se propõe a questionar a intolerância e o egoísmo presentes no país, falando principalmente sobre a luta racial.
Para transpor isso ao filme, o rapper lotou o Theatro Municipal de São Paulo e mesclou cenas de sua apresentação musical com animações explicativas de momentos históricos da luta negra no país. A concepção da Semana de Arte Moderna de 1922 e o ato que levou à fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, são alguns dos fatos utilizados para enaltecer figuras como a ativista Lélia Gonzalez, do MNU, e o arquiteto Tebas, um negro escravizado responsável por marcos prediais de São Paulo.
— Minha mulher disse que, com aquelas animações, ela se sentiu como se estivesse dentro da minha cabeça (risos). Nós usamos esse tom mais didático porque entendemos que é para ser como uma grande aula mesmo, de uma forma que se conecte com as pessoas da forma mais simples possível. É como dizem: "Entendeu ou quer que eu desenhe?". Foi isso que fizemos — explica Emicida, em entrevista a GZH.
Na parte musical, além da conexão com o repertório do show, o samba é trazido para a discussão, a fim de reforçar a construção da cultura nacional. O rap tem ganhado essa importância nas últimas décadas no Brasil e, por isso, o filme faz um paralelo com os EUA, onde o hip-hop foi fundamental na formação cultural.
Educação
Quanto aos perfis traçados, Abdias Nascimento, Ruth de Souza e Luiz Gama são outras figuras negras retratadas. Com eles, o próprio cantor tenta mostrar que o ativismo promovido por suas composições é uma continuidade da luta desenvolvida por séculos.
— A gente tem o Palácio do Planalto dizendo que vai acabar com o ativismo, mas quais são as consequências disso? No último século, isso representou nossos sonhos, por isso quero mostrar que a história é coletiva, e não só minha. São gerações de pessoas que nem estão aqui e que, se não unirmos os nossos, vivos, nada vai acontecer — defende o artista.
Com uma hora e meia de duração, AmarElo – É Tudo pra Ontem também propõe a ação dos espectadores. A repercussão recente da morte de um homem negro em um supermercado de Porto Alegre, por exemplo, ainda é pouco para Emicida. Por isso, ele apela para que a educação tenha um olhar mais atento na formação da população.
– Ela (a educação) está tão às traças que as pessoas abdicam dela e permitem que a ignorância dê as cartas, principalmente no poder. Eu era alvo de deboche quando era pequeno porque gostava de ler muito. E é errado dizer por aí que quem lê vai sair criticando tudo. Os livros estão aí para construir pontes, e não muros — reforça o artista.
Além do investimento em educação, o filme se preocupa em mostrar que o povo negro precisa se orgulhar de sua história e que os brancos também precisam participar desse movimento para que a igualdade ocorra.
— Queremos que as pessoas tenham a sensação de que podem fazer muito mais enquanto país, ainda mais neste momento em que o Brasil oscila como uma federação digna de pena ou de piada. Precisamos reivindicar nosso direito de ser grandioso para que a mediocridade não sequestre a gente, como está acontecendo agora — finaliza Emicida.