Tensões e conflitos morais costumam ser elementos de alta combustão dramatúrgica nos filmes do dinamarquês Thomas Vinterberg. Trata-se de um cineasta sem o hábito de aparar arestas que, para alguns espectadores, podem somar ao impacto dos enredos algum desconforto. Em cartaz no Guion Center 2, A comunidade é o mais recente longa do diretor que ganhou projeção internacional expondo, em Festa de família (1998), os podres e esqueletos no armário de insuspeitos "cidadãos de bem".
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O cenário de A comunidade é a cidade de Copenhague de meados dos anos 1970. Ali, o arquiteto Erik (Ulrich Thomsen), que se dedicou ao ensino universitário, e sua mulher, Anna (Trine Dyrholm), apresentadora de TV, decidem se mudar com a filha de 14 anos para a mansão que ele herdou dos pais. Os custos de manutenção da nova casa são altos, e parte de Anna a ideia de chamar amigos e agregados para ocupar quartos e dividir custos.
Com o grande grupo que se forma, virá do casal o ponto de fissura naquele peculiar arranjo doméstico. Erik tem um caso com uma jovem aluna, e Anna, para não romper o círculo afetivo formado por sua iniciativa, aceita que a rival se junte à turma. Mas entre a teoria libertária e a prática regida pela passionalidade dos sentimentos, existe uma zona de sombra na qual Anna irá se desintegrar emocionalmente.
Apesar desse promissor motor dramático, A comunidade desenvolve-se sem maiores emoções e surpresas em seu roteiro. Não se vê aqui, por exemplo, o suspense crescente que deságua em um grande impacto, como Vinterberg mostrou no espetacular A caça (2012), indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro com a história do professor acusado de pedofilia. Ou no denso Submarino (2010), com a saga dos dois irmãos que sobrevivem como fantasmas na vida adulta à tragédia que os marcou na infância.
A comunidade é sustentado pelas vigorosas performances de Thomsen e Trine, parceiros de Vinterberg em Festa de família. Do grupo que circunda o casal protagonista, pouco se sabe e pouco se tem em estofo narrativo. Para a casa se mudam um outro casal e seu filho pequeno, que sofre de uma doença cardíaca, e uns solteirões aparentemente desgarrados do convívio que, pelo jeito, não trabalham e curtem a vida com as benesses sociais proporcionadas por um país de alto grau de civilização como é a Dinamarca. Não surge nenhum tipo de conflito entre esses personagens que fazem apenas número na trama.
A filha de Erik e Anna até abre uma outra frente de interesse temático ao buscar sua primeira relação sexual com o garoto da vizinhança por quem se interessa – mas essa jovem parece mais uma adulta integrada ao ambiente de livre-arbítrio germinado por seus pais do que uma adolescente tateando seu próprio universo.
Ao fim e ao cabo, A comunidade tem como elemento de maior interesse o destaque para questões interessantes de se observar à luz da intolerância e do preconceito que cercam as relações contemporâneas, em especial em sociedades menos avançadas, social e politicamente. Vinterberg mostra a possibilidade de uma convivência coletiva – não apenas sob o mesmo teto, diga-se – que é recorrente em países nos quais o bem-estar e as liberdades individuais são elementos inegociáveis. E são regidos menos por dogmas religiosos e moralistas e mais pelo ideal utópico do cada um na sua e todo mundo numa boa.