Em um conhecido experimento da psicologia, dois pesquisadores colocaram um grupo de alunos da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, diante de uma roleta da sorte. Depois de girá-la, pediram que os estudantes anotassem o número indicado pela seta e lhe fizeram a seguinte pergunta: qual o percentual de países africanos que são membros das Nações Unidas?
É lógico que o número indicado pela roleta não tinha qualquer relação com as nações do continente na ONU. Mas a maioria dos participantes respondeu com porcentagens próximas ao que viram.
Pela conclusão dos psicólogos, eles estavam sob influência do viés da ancoragem – assim como um barco tem seus movimentos restritos à área alcançada pela âncora, as nossas escolhas são baseadas na primeira informação que recebemos. Por isso é tão difícil nos afastarmos de uma impressão inicial.
Esse é um dos mais de 180 vieses cognitivos que condicionam a nossa percepção sobre a realidade. Estudadas desde a década de 1960, essas inclinações atuam no inconsciente perturbando a maneira como processamos as informações e pensamos de modo crítico.
— Os vieses são filtros mentais. Funcionam como uma espécie de óculos especial que distorce a realidade. Todos somos enviesados, porque todos usamos esses óculos — explica o consultor de empresas Eduardo Ferraz, especialista em gestão de pessoas.
Publicado na revista Science, o estudo da roleta da sorte foi desenvolvido pelos israelenses Daniel Kahneman e Amos Tversky, pioneiros na ciência cognitiva que deu origem às teorias que explicam as escolhas irracionais humanas. Em 2002, Kahneman recebeu o Prêmio Nobel de Economia pelas suas pesquisas na área (Tversky havia morrido seis anos antes), abrindo terreno para uma nova corrente de estudos sobre o funcionamento inconsciente da mente – e as peças que esse mecanismo nos pregam.
Somos tão influenciados pelos vieses que eles passam pela surdina e acabamos nem percebendo. Só quando falamos, a ficha cai. Eles são a consequência do atalho que o nosso cérebro faz ao reagir ao mundo. Têm os seus benefícios, porque facilitam o processamento de informações, mas acarretam prejuízos, porque atrapalham a interação com outros seres humanos."
FABIANO MOULIN
NEUROLOGISTA
Os vieses explicam por que o nosso cérebro está propenso a cometer erros que impactam a nossa habilidade de fazer julgamentos racionais. Segundo Ferraz – que dedicou um capítulo de seu livro Seja a Pessoa Certa no Lugar Certo (editora Gente) a esses filtros –, eles estão espalhados em todas as esferas das nossas vidas, impactando todas as decisões que tomamos no dia a dia. Desde a definição sobre comprar um novo apartamento até a escolha do que comer no almoço.
Pense em outro viés, o do otimismo. Um fumante admite que poderá ter câncer de pulmão? Normalmente, não. Um obeso considera que sofrerá de colesterol alto? Também não. E um motorista que bebe antes de pegar o volante acha que irá provocar um acidente? Idem.
— Somos tão influenciados pelos vieses que eles passam pela surdina e acabamos nem percebendo. Só quando falamos, a ficha cai. Eles são a consequência do atalho que o nosso cérebro faz ao reagir ao mundo. Têm os seus benefícios, porque facilitam o processamento de informações, mas acarretam prejuízos, porque atrapalham a interação com outros seres humanos — diz Fabiano Moulin, neurologista pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp.
Segundo Moulin, eles são negativos porque levam o cérebro a cometer erros que impedem uma visão mais ampla da realidade. Se um acidente aéreo acabou de acontecer na sua cidade, por exemplo, você ficará mais propenso a optar por uma viagem de carro do que de avião nos dias seguintes – mesmo sabendo que o transporte aéreo é considerado o segundo mais seguro do mundo. Perde apenas para o elevador.
Procuramos informações que validem crenças
Para Ferraz, um viés essencial para compreender esse poder cognitivo da mente é o da confirmação (leia aqui uma lista dos 24 vieses cognitivos que mais nos atrapalham). Por causa dele, você tende a se lembrar, interpretar e pesquisar informações que validem as suas crenças, caindo em erros de raciocínio sem nem percebê-los. Reflita sobre um indivíduo crente em uma religião: se alguém lhe disser que os motivos da sua devoção servem para dar um sentido metafísico à vida, uma vez que a ciência já conseguiu explicar a origem do universo, essa pessoa irá negar. E, provavelmente, reagirá com raiva. Mais uma vez, é o viés dando as suas caras.
Por causa dele, também tendemos a ignorar as informações que contrastam com as hipóteses que defendemos. Uma pessoa que confia cegamente em seu parceiro e ouve que foi traído irá contestar o adultério. Afinal, essa acusação não corresponde ao seu sentimento.
— Se votei no (Jair) Bolsonaro, por exemplo, tendo a ignorar qualquer pessoa que fale mal dele ou a acusá-la de ser mal-intencionada. Já se um colega também gosta do Bolsonaro, tendo a adorá-lo. Mesmo que ele fale besteira ou deforme os acontecimentos. Dou um desconto a ele só porque pensa parecido comigo — ilustra Ferraz.
O contrário também é verdadeiro. Aí, trata-se do viés do pessimismo. Ele explica por que somos mais impactados por acontecimentos negativos do que positivos. Por isso, uma notícia sobre uma chacina salta mais aos olhos do que uma matéria sobre uma praça revitalizada. E também é por causa dele que um crítico literário que sempre detona os lançamentos parece mais inteligente e competente do que aquele que os elogia. Lembrou daquele colega aparentemente sabichão que costuma malhar todo mundo? Pois é.
“Somos uma bagunça”, afirma neurologista
Para a psicologia, ainda não está claro de onde surgem os vieses cognitivos. Os indícios levam a crer que venham das nossas relações comportamentais – família, criação, inclinação política, orientação sexual, crença religiosa e assim por diante. Porém, o certo é que não são opcionais. Todos os temos na forma de disposições espontâneas sobre as nossas atitudes.
— A ideia central está na nossa maneira de perceber o mundo, processar as informações e nos relacionarmos com o ambiente. Tudo isso é mediado, principalmente a forma como pensamos — afirma Angelo Brandelli, professor dos programas de pós-graduação em psicologia e em ciências sociais da PUCRS.
No Brasil, Daniel Kahneman, o vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2002, tem publicado o best-seller Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar (Objetiva). No livro, o psicólogo detalha os dois sistemas pelos quais pensamos – o 1 e o 2. Reativo, o primeiro está relacionado ao raciocínio imediato e automático (nele, formamos as ideias preestabelecidas). O segundo está conectado ao consciente. É um pensamento lento que necessita de tempo para elaborar uma conclusão (e nele, elaboramos as conclusões e os cálculos complexos).
O problema, segundo Kahneman, é que o nosso cérebro costuma ser preguiçoso, deixando o sistema 2 em segundo plano. Aí, a racionalidade serve mais para justificar a tomada de decisões do que para arbitrar as nossas escolhas.
Para a economia, dar a Kahneman um Nobel representou uma revolução. Até então, as teorias priorizavam o homem como um ser racional que sempre escolheria a opção mais vantajosa para si. De acordo com o neurologista Fabiano Moulin, o psicólogo desmascarou a tese do homem econômico pregada pelo guru do liberalismo, Adam Smith.
— Na realidade, somos uma verdadeira bagunça. É possível mudar o comportamento de uma pessoa sem que ela tenha ideia do que está acontecendo e sem precisar discutir um segundo sequer – diz Moulin.
“Ficar” com US$ 30 ou “perder” US$ 20?
Os vieses cognitivos na economia serviram para balizar estratégias no momento de comprar ou de investir. Esse desvio de racionalidade estimula, por exemplo, o consumo. Pelo mesmo viés da ancoragem, pendemos a comprar um produto em promoção mesmo que ainda seja caro – utilizamos como base o preço original, bem mais alto, e concluímos que estamos fazendo um bom negócio. Mas especialistas negam que se trate de manipulação.
— Querendo ou não, todo o ambiente nos inclina para uma percepção — acrescenta Moulin.
O viés de aversão à perda, por exemplo, faz com que evitemos mais um prejuízo do que um potencial ganho. O experimento vem de um jogo de azar. Em um estudo também publicado na revista Science, em 2006, os participantes foram divididos em dois grupos. Todos ganharam US$ 50. A primeira turma recebeu a opção de ficar com US$ 30 ou jogar com 50% de chance de ficar com US$ 50. Já a segunda podia perder US$ 20, mas também jogar com a mesma probabilidade de permanecer com US$ 50.
Se você pensar bem, as opções são iguais. Entretanto, mais gente do primeiro grupo decidiu apostar do que do segundo. Por quê? Eles ouviram a palavra “ficar” ao invés de “perder”.
Outro Nobel
- Mais de uma década depois de Daniel Kahneman, foi a vez de a economia se curvar para a psicologia novamente. O americano Richard Thaler recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2017 pelos seus estudos que se dedicaram a mostrar a irracionalidade humana nas escolhas. Em sua pesquisa, Thaler mostrou como a racionalidade limitada, as preferências sociais e a falta de controle influenciam nas nossas decisões. O seu livro Nudge: Como Tomar Melhores Decisões sobre Saúde, Dinheiro e Felicidade (editora Objetiva) também está publicado no Brasil.
Componente automático desvia do acerto
Apesar do nível de inconsciência dos vieses, especialistas indicam que eles podem ser controlados. Porém, não há uma maneira simples de adormecê-los: evitar o seu poder passa por compreendê-los.
Nos Estados Unidos, exercícios mostraram que a participação de mulheres em orquestras aumentou depois que as audições começaram a ser feitas às cegas. Antes, pelo viés cognitivo de que eles tocam melhor do que elas, os palcos eram preenchidos quase que totalmente por homens.
Consultor de agências da ONU com pesquisas nas áreas de psicologia social e da saúde, Angelo Brandelli tem aplicado o comportamento dos vieses nos estudos sobre preconceito. Para ele, os vieses podem ser mais perigosos do que imaginamos.
Pelo viés da disponibilidade, por exemplo, as pessoas influenciam os seus julgamentos pelo que lhes salta à mente mais rápido. E aquelas que tem um pensamento negativo enraizado sobre a população negra são mais propícias a ter atitudes preconceituosas sem nem perceber, como escolher um branco ao invés de um negro para uma vaga de emprego na sua empresa.
— O ideal é termos uma educação que priorize os direitos humanos, para nem termos essa informação disponível no cérebro — contemporiza Brandelli.
Há ainda estudos que mostram que médicos tendem a prescrever tratamentos de saúde piores para portadores de aids, doença a qual se atribui responsabilidade ao paciente pela contração. E como evitar? Para Brandelli, basta estar ciente de que, sempre que tomamos uma decisão, existe esse componente automático que não controlamos que pode nos desviar da melhor decisão a ser tomada:
— Temos de estar cientes que eles existem, usar estratégias para reduzi-los e nos educarmos para perceber que ele pode ser usado muitas vezes contra os nossos próprios interesses. A sociedade tem que se mobilizar para usar isso a favor da coletividade, e não contra.
Mais fácil avaliar o outro do que a si próprio
Os vieses também podem ser usados na política. Em 2010, o Reino Unido tornou-se o primeiro país a ter no governo um departamento especializado na ciência do comportamento para o desenvolvimento de políticas públicas. Por lá, os britânicos descobriram que os contribuintes tendem a não atrasar o pagamento de seus impostos quando sabem que os vizinhos os pagam em dia.
O ex-presidente americano Barack Obama também chegou a aplicar os vieses cognitivos em um escritório vinculado à Casa Branca. Em setembro de 2015, publicou decreto com diretrizes para que os órgãos do país usassem o enfoque comportamental em suas políticas públicas e criou o Time de Ciências Comportamentais e Sociais. É que, durante a campanha, um grupo de profissionais autodenominados cientistas comportamentais descobrira que era melhor responder “Na verdade, Obama é cristão”, do que “Não, Obama não é muçulmano”, às falsas alegações contra o democrata.
Uma dica para medir o impacto dos vieses, segundo o consultor de empresas Eduardo Ferraz, é avaliar o grau de sucesso da nossa vida:
— Basta olhar os resultados. Se 95% do que você faz está dando certo, você tem razão. Mas, se está dando mais errado do que certo, pergunte aos outros. Eles sabem. É muito mais fácil perceber o viés do outro do que avaliar os seus próprios.
A verdade é que nunca perderemos os nossos vieses. Segundo Fabrício Moulin, o simples fato de reconhecer que estão impregnados em nossos comportamentos representam um passo na direção de mitigá-los:
— Precisamos entender que todos temos, que permeiam toda a nossa percepção e prestar atenção no quanto eles nos influenciam para termos um filtro mais leve e menos impregnado do mundo. Em resumo, para sermos o mais imparciais possíveis.
Lista foi elaborada por uma organização internacional, a School of Thought