Disponível para aluguel digital em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube, o documentário Ennio, o Maestro (Ennio, il Maestro, 2021) celebra o italiano que compôs muitas das mais marcantes trilhas sonoras do cinema. É de Ennio Morricone (1928-2020) a música dos clássicos faroestes de Sergio Leone, como Por um Punhado de Dólares (1964), Três Homens em Conflito (1966) e Era uma Vez no Oeste (1968).
Dos filmes histórico-políticos de Gillo Pontecorvo — A Batalha de Argel (1966), Queimada (1969) e Ogro (1979).
Dos giallos de Dario Argento, na trilogia O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), O Gato de Nove Caudas (1971) e Quatro Moscas no Veludo Cinza (1971).
De Cinzas no Paraíso (1978), A Missão (1986), Os Intocáveis (1987), Bugsy (1991), Malena (2000) e Os Oito Odiados (2015), pelos quais concorreu ao Oscar (só ganhou pelo último, nove anos após receber da Academia de Hollywood uma estatueta dourada honorária).
E também de Teorema (1968), Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970), Sacco e Vanzetti (1971), 1900 (1976), Cão Branco (1982), O Enigma de Outro Mundo (1982), Era uma Vez na América (1984), Cinema Paradiso (1988), Tiro de Misericórdia (1990), Reviravolta (1997), Lolita (1997)...
A lista acima não dá conta, mas ajuda a dimensionar a quantidade, a longevidade, a versatilidade e a qualidade da obra de Morricone, autor de mais de 500 trilhas para o cinema e para a TV, além de também ter composto uma ópera, uma missa, concertos e sinfonias (como aquela em memória das vítimas do 11 de Setembro). O italiano também conquistou a popularidade, a ponto de fazer parcerias com a dupla eletrônica Pet Shop Boys e o rapper Coolio e de ser homenageado por Bruce Springsteen e a banda Metallica, entre outros artistas. E atingiu a perenidade: muitos de seus temas são assobiados, cantarolados, referenciados ou mesmo parodiados, a exemplo do que acontece com, por exemplo, Bernard Herrmann (de Psicose e Taxi Driver), Nino Rota (de O Poderoso Chefão e Amarcord), John Williams (de Tubarão, Star Wars, Superman, Indiana Jones e E.T.) e Vangelis (de Carruagens de Fogo, Blade Runner e 1492: A Conquista do Paraíso).
Ennio, o Maestro tem roteiro e direção de Giuseppe Tornatore, cineasta italiano com quem Morricone colaborou em todos os longas-metragens desde Cinema Paradiso até Lembranças de um Amor Eterno (2016). Com 156 minutos de duração, o documentário não é, formalmente, criativo como o recente Moonage Daydream (2022), que retrata David Bowie sem recorrer a entrevistas com outros artistas, críticos e jornalistas. Pelo contrário, chega a abusar das chamadas "cabeças falantes", conforme apontou a crítica Maria do Rosário Caetano: são mais de 30 depoimentos, cujos elogios acabam se sobrepondo e roubando espaço de bastidores saborosos recuperados pelo próprio Morricone — como quando revela seu único arrependimento, o de não ter feito a música de Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick (por quê? Assista ao filme) — ou por cineastas e outros músicos: de Bernardo Bertolucci a Liliana Cavani, de Terrence Malick a Wong Kar-wai, de Clint Eastwood a Quentin Tarantino, de John Williams a Hans Zimmer, de Bruce Springsteen a James Hetfield, do Metallica.
Aliás, quem assistir ao filme por causa das trilhas terá de esperar uma boa meia hora antes de reconhecer alguma melodia. É que o documentário começa recuperando a vida humilde da família Morricone e o início de sua carreira na música. À primeira vista, pode parecer uma escolha preguiçosa de Tornatore, mas na verdade esse contexto se mostrará fundamental para entender o artista que Ennio se tornou.
Para começo de conversa, ele nem queria ser músico — seu desejo era o de ser médico. Foi o pai, trompetista em uma banda, que o obrigou a estudar o mesmo instrumento no conservatório. Lá, teve como professor e mentor Goffredo Petrassi, a quem temeu desagradar a partir do momento em que passou a trabalhar com filmes.
Os faroestes dirigidos por Sergio Leone e Sergio Corbucci logo garantiram fama a Morricone, mas durante boa parte da carreira ele conviveu com um sentimento de culpa e o desprezo dos "compositores sérios" italianos por aqueles que faziam "submúsica para o cinema". Certamente foi por isso que levava para os filmes tanto suas experimentações vanguardistas (por exemplo, transformar máquinas de escrever em instrumentos musicais) quanto obras de autores clássicos como Bach, Beethoven, Frescobaldi e Stravinsky. Antes, porém, sempre submetia as composições a sua primeira ouvinte: a esposa, Maria.
O reconhecimento ao talento de Ennio foi tardio tanto no meio acadêmico quanto pela Academia de Hollywood. A primeira indicação ao Oscar saiu apenas em 1979, por Cinzas no Paraíso, de Terrence Malick, e a primeira estatueta foi uma honorífica, quando ele já tinha quase 80 anos. Em 1987, houve uma tremenda injustiça, reclamada pelo próprio Morricone: a trilha do filme A Missão, de Roland Joffé, que era ancorada pelo oboé tocado pelo jesuíta Gabriel (personagem de Jeremy Irons) e combinava cantos litúrgicos, cordas hispânicas e elementos da cultura indígena, perdeu para a de Por Volta da Meia-Noite, na qual Herbie Hancock empregou músicas compostas anteriormente.
— Quando anunciaram o vencedor, fui embora — confessa o maestro no documentário.
Esses momentos de profunda honestidade estão entre os melhores de Ennio, o Maestro. Os pontos mais altos são aqueles que reconstituem o processo criativo de Morricone — que tanto pode ser encarado como "geométrico, matemático", segundo um entrevistado, quanto "espiritual, transcendental", conforme outro (e David Puttnam, produtor de A Missão, afirma mais ou menos assim: "Ainda que lutemos com a ideia de existir Deus, quando ouvimos a música de Ennio podemos acreditar que há algo a mais"). A corroborar a primeira opinião, o maestro conta que jogar xadrez o ajudava a compor; a contribuir para a segunda, ele diz que procurava "entender a alma" de cada diretor, transformando-se, nas suas próprias palavras, em um camaleão — vejam só: a comparação com o filme sobre David Bowie não era tão descabida.
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