Com sede em Caxias do Sul, a Belas Letras acaba de publicar dois livros assinados pelo jornalista e escritor britânico Ian Nathan, ambos repletos de imagens de filmes, fotos de bastidores, reprodução de cartazes e uma "cronologia completa", incluindo os trabalhos não creditados: Quentin Tarantino: O Cineasta Icônico e sua Obra (tradução de Paula Diniz, 176 páginas, R$ 169,90) e Tim Burton: O Cineasta Icônico e sua Obra (tradução de Fernando Scoczynski Filho, 192 páginas, R$ 169,90). Os títulos abrem a coleção de cinema da editora gaúcha, que tem no catálogo várias obras sobre rock (como Riders On the Storm: Minha Vida com Jim Morrison e os The Doors, Paul McCartney: As Letras e George Harrison: O Beatle Relutante) e séries de TV (Central Perk: O Livro de Receitas Oficial de Friends e Bem-vindo à Dunder Mifflin: Os Bastidores da Série The Office). Em agosto, deve começar a pré-venda de um título sobre um cultuado longa-metragem de ficção científica — a Belas Letras promete revelar o nome em breve, mas já dei uma espiada no material de divulgação e confesso que fiquei babando.
Ex-editor da revista Empire, Nathan é o escritor de The Coppolas: A Movie Dynasty, Ridley Scott: A Retrospective e Anything You Can Imagine: Peter Jackson and the Making of Middle-earth. Os livros sobre Tarantino e Burton fazem parte de uma série que inclui obras dedicadas a Clint Eastwood, Steven Spielberg, os irmãos Coen, Guillermo Del Toro, Wes Anderson e Christopher Nolan.
Todas trazem na capa o aviso "Não oficial e não autorizado", como a se distanciar das biografias do tipo chapa-branca, acríticas e sem informações comprometedoras (a expressão vem da cor das placas dos carros que eram usados por órgãos governamentais no país). Mas, pelo menos no caso de Tarantino, o autor não esconde sua paixão pelo personagem. Na introdução, Nathan conta que nunca foi a uma sessão como a primeira realizada em Londres de Pulp Fiction (1994), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. Não havia, ele descreve, "a compostura calma dos frequentadores de cinema, mas sim uma onda de adrenalina de um show de rock, a subida e o mergulho inexoráveis de uma montanha-russa ou o barato de uma droga pesada. Era como a iniciação de uma fraternidade selvagem".
Estadunidense de 61 anos, duas vezes ganhador do Oscar de melhor roteiro original — por Pulp Fiction (em dupla com Roger Avary) e por Django Livre (2012) — e três vezes indicado ao prêmio de direção (por Pulp Fiction, Bastardos Inglórios, de 2009, e Era uma Vez em... Hollywood, de 2019), Quentin Tarantino é um raríssimo cineasta contemporâneo que conseguiu transformar seu sobrenome em adjetivo, à la hitchcockiano e bergmaniano, por imprimir em seus filmes um estilo tão marcante, com uma temática ou uma linguagem tão característica.
Tarantinescos são os títulos que conjugam personagens amorais, mas com um código de ética muito particular (geralmente, interpretados por atores que até então amargavam o ostracismo); narrativa fragmentada e com diferentes pontos de vista; violência estilizada; referências mil à cultura pop (de quadrinhos de super-herói às produções orientais de kung fu, do faroeste italiano aos seriados de TV); diálogos embebidos por frases de efeito, palavrões e banalidades; um senso de humor mórbido e uma trilha sonora descolada e classuda (que costuma dar margem a cenas de dança). Ultimamente, como visto em Bastardos Inglórios e Era uma Vez em... Hollywood, acrescentou a seu modus operandi a reinvenção da História: Hitler foi morto por soldados judeus dos EUA, a atriz Sharon Tate não foi assassinada pela seita de Sharon Tate. O sucesso de sua cinematografia gerou muitas imitações, mas há um fetiche do diretor que ninguém se atreve a copiar: o de mostrar, detidamente, pés femininos.
Com base em dezenas, talvez centenas de artigos, conferências de imprensa e livros, Ian Nathan divide a biografia em 10 capítulos, ordenados cronologicamente. O primeiro, intitulado "Eu não fui à escola de cinema, fui ao cinema", debruça-se sobre a infância e a juventude de Tarantino, que nasceu em Knoxville, no Tennessee, quando sua mãe, Connie, tinha apenas 16 anos. Sarcástica e obstinada, ela serviu de arquétipo para personagens do futuro cineasta, como a protagonista de Jackie Brown (1997) e a Beatrix Kiddo dos dois volumes de Kill Bill (2003 e 2004). O pai, Tony Tarantino, um ator de meio expediente e estudante de Direito com 21 anos, só emprestou o sobrenome ao filho: Connie terminou o casamento quando soube que estava grávida.
Já em Los Angeles, ela voltou a se casar outras vezes, a primeira delas com um músico local chamado Curtis Zastoupil, e vivia levando o pequeno Quentin ao cinema, não importando a classificação indicativa. "Amargo Pesadelo (1972) me assustou pra caralho", disse Tarantino, que tinha nove anos quando, mesmo sem entender muito bem, assistiu à chocante cena de violência sexual sofrida pelo personagem de Ned Beatty no filme de John Boorman sobre quatro amigos da cidade que vivem um inferno ao deparar com dois caipiras nas correntezas de um rio do interior da Geórgia.
Se a experiência chegou a virar trauma, durou pouco. Com o terceiro marido de Connie, Jan Bohusch, Quentin fazia sessões quádruplas no cinema, às 15h, às 18h, às 20h e à meia-noite. Em casa, a TV era companhia constante. O seriado Kung Fu (1972-1975) foi uma influência marcante — a ponto de, mais tarde, Tarantino ter o prazer de escalar o ator David Carradine em Kill Bill. Pode-se dizer que o menino Butch quando visto colado à tela da televisão em Pulp Fiction, assistindo ao desenho animado Clutch Cargo, é uma lembrança do próprio diretor.
Aos 16 anos, Quentin decidiu parar de estudar. A mãe disse que ele deveria arranjar um emprego. Mentindo a idade, o garoto virou lanterninha em um cinema pornô. Depois, trabalhou numa videolocadora excêntrica para os padrões hollywoodianos, a Video Archives, onde exercitou sua verborragia cinéfila e completou sua "formação".
Tarantino deixou inacabado seu primeiro filme, a comédia independente My Best Friend's Birthday, rodada em 1987 com míseros US$ 5 mil, mas na sua produção aprendeu o que tinha de fazer e, melhor ainda, o que não fazer. Em um frenesi criativo compartilhado com Roger Avary, deu vida a Cães de Aluguel (1992), a Amor à Queima Roupa (1993), filmado por Tony Scott, e a Pulp Fiction, além de bolar a história de Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone, e de escrever, dirigir, produzir e estrelar o segmento The Man From Hollywood na antologia Grande Hotel (1995). Ian Nathan reconstitui bastidores saborosos do começo de carreira, desde episódios mais anedóticos (por causa do calor, os atores Chris Penn e Lawrence Tierney ficavam sem camisa antes das filmagens de Cães de Aluguel para poupar o figurino do suor) até momentos mais tensos (como a escolha de John Travolta para o papel de Vincent Vega em Pulp Fiction).
O sucesso possibilitou a Tarantino surfar ainda mais na sua megalomania (sob o aval de Nathan, que não economiza adjetivos e elogios) e a brincar ainda mais com suas fontes de inspiração. Vide a mistura de homenagem a Os Canhões de Navarone (1961) e Os Doze Condenados (1967) com sacralização da sala de cinema em Bastardos Inglórios. Ou a cruza de faroeste com os romances policiais de Agatha Christie em Os Oito Odiados (2015). Ou ainda a celebração dos filmes da Blaxploitation em Jackie Brown. Que acabou rendendo uma das primeiras broncas com Spike Lee: o cineasta de Malcolm X (1992) e Infiltrado na Klan (2018) "condenou com veemência a apropriação do linguajar dos negros". Mais adiante, Lee detonou Tarantino por causa de Django Livre.
Na trama ambientada anos antes da Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865), um escravizado (Jamie Foxx) é comprado por um caçador de recompensas que vagueia pelo Velho Oeste disfarçado de dentista (Christoph Waltz, Oscar de melhor ator coadjuvante). Os dois fazem uma aliança inesperada para caçar criminosos e para tentar libertar uma mulher (Kerry Washington) de um sádico fazendeiro sulista (Leonardo DiCaprio) que organiza torneios de luta livre entre os negros cativos. O filme, para alguns críticos, parece uma exploração zombeteira da violência da escravidão e do racismo, e ainda incorre na ideia do chamado "negro excepcional", em contraposição à suposta "servilidade natural" da etnia. Lee reclamou mesmo sem ter visto: "Não vou assistir. Tudo o que posso dizer é que ele é desrespeitoso aos meus ancestrais. A escravidão nos Estados Unidos não foi um western spaghetti de Sérgio Leone, mas um holocausto".
No livro, Ian Nathan estabelece Django Livre e Bastardos Inglórios como um díptico de vingança histórica — que mais tarde viraria uma trilogia com Era uma Vez em... Hollywood. E o autor dá espaço generoso para justificativas de Tarantino: "Eu queria entrar no momento mais sombrio da história americana, verdadeiramente o maior pecado deste país. E não o superamos. Não podemos nem lidar com o assunto." (...) "Todos nós intelectualmente 'sabemos' sobre a brutalidade e a desumanidade da escravidão, mas depois que você pesquisa, não é mais algo intelectual, não é mais apenas um registro histórico — você sente isso nos ossos. Isso deixa você com raiva e com vontade de fazer algo... Estou aqui para lhe dizer que, por mais que as coisas fiquem ruins no filme, algo pior realmente aconteceu." (...) "Quando as narrativas de escravizados são abordadas em filmes, elas tendem a ser Históricas com H maiúsculo, com uma qualidade que as mantêm distantes. Eu queria quebrar esse aspecto histórico, queria jogar uma pedra naquele vidro e quebrá-lo para sempre, trazendo o espectador para dentro." Django Livre acabou se tornando o maior sucesso comercial do diretor, com US$ 425,3 milhões arrecadados, seguido justamente de Era uma Vez em... Hollywood (US$ 371,9 milhões) e de Bastardos Inglórios (US$ 321,4 milhões).
A biografia de Ian Nathan foi publicada originalmente em 2019, mas não ficou desatualizada, pois de lá para cá Quentin Tarantino parece estar curtindo uma aposentadoria precoce. O diretor até desistiu daquele que seria seu último filme, The Movie Critic, ambientado na Los Angeles do final dos anos 1970 e baseado na trajetória do obscuro crítico de cinema de uma revista pornográfica.
É provável que desenvolva um novo projeto, para que possa alardear como a sua despedida — Tarantino é um craque do marketing em causa própria —, mas com certeza não haverá outro depois. Como Nathan recupera no seu livro, o fracasso de público e de crítica da dobradinha Grindhouse (2007), formada por À Prova de Morte (erroneamente chamado de À Prova de Amor na cronologia) e Planeta Terror (de Robert Rodríguez), alertara o cineasta de que não era um Midas do cinema, "o que provocou um desejo crescente de não permitir que sua carreira caísse na mediocridade. Ele ia cumprir sua promessa (a de fazer apenas 10 longas-metragens, sendo que considera Kill Bill como um só) e depois se aposentar. Temia o declínio gradual de seus talentos: aqueles últimos filmes que deixam os críticos balançando a cabeça". O plano é parar com a reputação ainda em alta. Ou, nas características palavras do próprio Tarantino, reproduzidas por Nathan, não dar à luz "um daqueles filmes que parecem um pau mole, velho e flácido e que te custam o equivalente a três bons filmes no que diz respeito a sua avaliação".