Nesta terça-feira, 21 de maio, o mundo do cinema comemora a primeira exibição de um filme icônico tanto de seu diretor, o estadunidense Quentin Tarantino, quanto de sua época, os anos 1990: Pulp Fiction (1994), que no Brasil ganhou o desnecessário subtítulo Tempo de Violência e atualmente está disponível na Netflix e no canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay.
A sessão ocorreu no Festival de Cannes, onde, então com 31 anos, o diretor e roteirista nascido em Knoxville, no Tennessee, conquistou a Palma de Ouro com um dos filmes mais discutidos, analisados, influentes e imitados das últimas três décadas. A partir de Pulp Fiction, Tarantino conseguiu transformar seu sobrenome em adjetivo, a exemplo de mestres como Fellini, Hitchcock e Bergman.
Tarantinescos são os filmes que conjugam personagens amorais, mas com um código de ética muito particular (geralmente interpretados por um elenco que até então amargava o ostracismo), violência estilizada, referências mil à cultura pop (de quadrinhos de super-herói às produções orientais de kung fu, do faroeste italiano aos seriados de TV), diálogos embebidos por frases de efeito, palavrões e banalidades, um senso de humor mórbido e uma trilha sonora descolada e classuda, que costuma dar margem a cenas de dança. Ah, sim, e ele tem um fetiche que ninguém se atreve a copiar: o de mostrar, detidamente, pés femininos.
Ultimamente, Tarantino aprimorou uma característica narrativa de seu início de carreira. Se Cães de Aluguel (1992), seu primeiro longa-metragem, e Pulp Fiction contavam a história por diferentes pontos de vista, em Bastardos Inglórios (2009), Django Livre (2012) e Era uma Vez em Hollywood (2019) o cineasta reescreve a História.
Sobre Pulp Fiction, assim resumiu Roger Lerina certa vez em Zero Hora: "Tarantino potencializa as características de sua estreia ao costurar tramas e personagens em um ziguezague narrativo desconcertante, condimentando com humor e ação esse xis-tudo de referências pop". A engenhosa narrativa circular faz três tramas principais costurarem sete segmentos cronologicamente embaralhados. Os protagonistas são dois matadores (John Travolta e Samuel L. Jackson) atrás de um boxeador (Bruce Willis) que passou a perna no chefe deles (Ving Rhames, que tem uma das frases mais antológicas da filmografia tarantinesca, aquela do "Eu vou ser medieval..."). Há ainda a namorada (Uma Thurman) do gângster, a quem um dos pistoleiros precisa entreter em uma noitada de drogas e rock'n'roll.
As discussões dos dois assassinos de aluguel sobre banalidades tornaram-se icônicas. Antes de uma chacina, Vincent e Jules fazem digressões sobre a liberalidade com as drogas em Amsterdã, o nome do sanduíche quarterão com queijo em francês e o componente erótico de uma massagem nos pés. "Os atores parecem sair dos personagens para retomá-los em seguida. O impacto verbal é tão forte e violento quanto o impacto físico da ação", escreveu o crítico britânico Mark Cousins, que também fez uma ponderação curiosa no seu livro História do Cinema (2004). Para o ensaísta de publicações como Sight & Sound e The Times, antes do conceito de meme ser conhecido na internet, Pulp Fiction foi um meme cinematográfico: sua influência viral fez com que muitos filmes produzidos nos anos 1990 se parecessem com versões (às vezes opacas) da obra de Tarantino. Nessa lista, podemos incluir Get Shorty (1995), Coisas para se Fazer em Denver Quando Você Está Morto (1995), Contrato de Risco (1996), Últimas Consequências (1997), Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (1998), Quinta-Feira Violenta (1998), Santos Justiceiros (1999) e Vamos Nessa! (1999). Há exemplos mais recentes, como A Última Cartada (2006), Xeque-Mate (2006), Maus Momentos no Hotel Royale (2018) e Trem-Bala (2022).
Com orçamento de US$ 8 milhões, Pulp Fiction faturou US$ 213 milhões apenas nos cinemas. Venceu o Oscar de roteiro original (assinado por Tarantino com Roger Avary) e disputou as estatuetas douradas de melhor filme, diretor, ator (John Travolta), ator coadjuvante (Samuel L. Jackson, que ficou celebrizado pelo monólogo em que recria uma passagem da Bíblia, Ezequiel 25:17), atriz coadjuvante (Uma Thurman) e montagem.
A trilha sonora foi onipresente nas festas bacanas dos anos 1990. Misirlou, surf music instrumental que abre o filme, gravada por Dick Dale em 1962, é uma versão de uma canção folclórica com provável origem no Império Otomano. Tarantino também "descobriu" e usou no filme pérolas como o funk Jungle Boogie, gravado em 1973 pelo Kool & The Gang, You Never Can Tell, hit de 1964 de Chuk Berry dançado antologicamente pelos personagens de Thurman e Travolta, Son of a Preacher Man, gravada em 1968 por Dusty Springfield, a versão do Urge Overkill para Girl, You'll Be a Woman Soon, canção de Neil Diamond de 1967, e Let's Stay Together, na voz de Al Green, em registro de 1971.
Sete curiosidades sobre "Pulp Fiction"
1) Pulp Fiction foi idealizado, inicialmente, como três longas policiais B de baixíssimo custo que o diretor rodaria com a mesma equipe e o mesmo elenco. O método era usado por dois cineastas que ele idolatra: Monte Hellman e Roger Corman. Com o sucesso de Cães de Aluguel (1992), vislumbrou a possibilidade de reunir as três histórias em um filme só. O roteiro circular definitivo começou a tomar forma durante uma temporada que ele passou em Amsterdã — daí as referências à Holanda no início da trama.
2) No projeto original de Tarantino, Vincent Vega seria vivido por Michael Madsen (ator de Cães de Aluguel), que optou por outro trabalho. O papel ficou com John Travolta, nome que o diretor fez prevalecer sobre o desejo do produtor Harvey Weinstein de chamar Daniel Day-Lewis, que queria interpretar o matador.
3) O cachê de Travolta foi de cerca de US$ 150 mil. Depois de Pulp Fiction, subiu para US$ 20 milhões. Já Bruce Willis cobrava US$ 8 milhões à época, mas topou um salário simbólico em troca de participação nos lucros. Com a carreira em momento crítico, foi um grande negócio, sobretudo em prestígio, algo que se repetiu com todo o elenco do filme.
4) Uma Thurman inicialmente recusou o papel de Mia, o que fez atrizes como Isabella Rossellini, Meg Ryan, Daryl Hannah e Michelle Pfeiffer serem entrevistadas. Tarantino convenceu Thurman lendo o roteiro para ela ao telefone.
5) A dança de Vince e Mia no Jack Rabbit Slim's faz citação à sequência com Mario Pisu e Barbara Steele em 8 1/2 (1963), de Federico Fellini.
6) Em seu livro de memórias, Cidadão Cannes, Gilles Jacob, presidente do Festival de Cannes, revela os bastidores da votação que deu a Palma de Ouro a Pulp Fiction. Segundo ele, o filme era o "protegido" do presidente do júri, Clint Eastwood. Na primeira rodada de votos, Pulp Fiction saiu atrás do chinês Tempo de Viver, de Zhang Yimou, e empatou com o russo O Sol Enganador, de Nikita Mikhalkov. Mas virou o jogo depois.
7) Em 2002, o mais famoso artista visual de rua do mundo, o britânico Banksy, se apropriou de uma cena célebre de Pulp Fiction, com os personagens de Travolta e Jackson. Só que, no lugar das pistolas, colocou duas bananas. Cinco anos depois, acabou coberto de tinta por funcionários da estação Old Street do metrô de Londres, em uma ação de limpeza contra pichações.