Nunca festejei o Saint Patrick's Day, o Dia de São Patrício, o padroeiro da Irlanda, uma celebração que ganhou força em Porto Alegre a despeito de ser incipiente na cidade a imigração daquele país europeu. Mas todo 17 de março eu lembro de Um Tiro de Misericórdia (State of Grace, 1990), filme policial cujo clímax ocorre durante o desfile comemorativo em Nova York.
Atualmente disponível na plataforma Looke, mas como Tiro de Misericórdia, o filme foi um fracasso de bilheteria (arrecadou menos de US$ 2 milhões), não concorreu a qualquer prêmio e teve sua visibilidade junto à crítica obscurecida por outro título de temática semelhante lançado praticamente naquela mesma semana de setembro de 1990 — Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese. Mas ao longo do tempo conquistou fãs fiéis.
O crítico Vince Leo, por exemplo, elogiou a atuação de Sean Penn: "São os demônios internos de seu personagem que fornecem ao filme a quantidade certa de conflito, sempre nos deixando cientes do quão tênues são as linhas que fazem a a diferença entre a vida e a morte, bem como o certo e o errado, nas ruas de Nova York". Já o célebre Roger Ebert (1942-2013) louvou o desempenho de Gary Oldman, por conta da "visão distorcida de seu personagem, que vive em um mundo de maldade e traição mas de alguma forma pensou que está fazendo a coisa certa".
Escrito pelo dramaturgo Dennis McIntyre, que morreu sete meses antes da estreia do filme, aos 47 anos, Um Tiro de Misericórdia foi dirigido por Phil Joanou, que havia feito a comédia Te Pego Lá Fora (1987) e o documentário U2: Rattle and Hum (1988) e que depois faria o suspense Desejos (1992) — e ultimamente anda sumido (não lançou mais nada após o terror A Seita, de 2016). O elenco é ótimo, cheio de atores que já ganharam ou disputaram o Oscar — além de Penn e Oldman, temos Ed Harris, John C. Reilly e o veterano Burgess Meredith, e ainda há Robin Wright e John Turturro. O grande compositor italiano Ennio Morricone assina a trilha sonora.
Na trama, Sean Penn interpreta o estadunidense de origem irlandesa Terry Noonan, que, após uma longa ausência, retorna ao bairro Hell's Kitchen, em Nova York. Lá, seu imprevisível amigo de infância Jackie Flannery (Gary Oldman) está envolvido em uma organização criminosa dirigida pelo irmão mais velho, Frankie (Ed Harris). Terry reacende um antigo relacionamento com a irmã da dupla, Kathleen (Robin Wright), a quem confessa um segredo: é, na verdade, um policial disfarçado.
E mais não conto, para evitar spoilers. Mas, para justificar a lembrança neste Saint Patrick's Day, preciso dizer que o final do filme é antológico. Joanou intercala um tiroteio em câmera lenta, dentro de um bar, com cenas do desfile em homenagem ao padroeiro da Irlanda. Com cerca de sete minutos de duração, a sequência alude àquela do batismo em O Poderoso Chefão (1972) e até hoje rende discussões sobre o grau de realismo (repare na pontaria — ou falta de pontaria — de um dos atiradores e na explosão de sangue). Mas me parece inegável que o diretor de fotografia Jordan Cronenweth (de Blade Runner e Peggy Sue, seu Passado a Espera, pelo qual competiu no Oscar) e a editora Claire Simpson (oscarizada por Platoon e indicada por O Jardineiro Fiel) dão um show à parte.