Você pode até não ter assistido ao filme 365 dni, mas aposto que já deparou com algum comentário sobre o longa nas redes sociais. A produção polonesa segue a linha soft porn – a la Cinquenta Tons de Cinza, como explica em sua resenha o jornalista Ticiano Osório, de GaúchaZH – e está entre os filmes mais assistidos da Netflix nas últimas semanas. Até aí tudo bem. O problema, segundo grande parte do público e da crítica especializada, é que o enredo estaria romantizando uma relação abusiva – e isso está causando rebuliço na internet.
Na história, Massimo (Michele Morrone) sequestra Laura (Anna-Maria Sieklucka), uma mulher que não sai da cabeça do mafioso italiano bonitão. Em cárcere privado, ela tem 365 dias para se apaixonar por ele. O enredo se desenrola com cenas picantes, atos sexuais não consentidos, traços da Síndrome de Estocolmo (quando o refém cria uma relação afetiva com o sequestrador), a caracterização de um relacionamento tóxico e, no fim das contas, uma paixão intensa entre os protagonistas. Apesar das críticas, há uma parcela das espectadoras que diz "desejar estar na pele da personagem", sob justificativa de que tudo não passa de uma fantasia sexual.
Afinal, há limite para o fetiche? Por que ainda há mulheres que se sentem tão atraídas por histórias de dominação masculina? Se sentir excitada com o filme revela uma tendência a romantizar relacionamentos tóxicos?
Para responder essas e outras questões, conversamos sobre o tema com três experts da área de comportamento feminino: a psicóloga Fabíola Luciano, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental pela Universidade de São Paulo (USP), a psicanalista Isadora Severo Garcia, mestre pela PUC-Rio, e a psicóloga e sexóloga Lina Wainberg, pós-graduada em sexologia.
É abuso e ponto!
Primeiro, vamos esclarecer o seguinte: é consenso entre as especialistas que o enredo trata de uma relação abusiva, doentia e que, se transposta para a realidade, seria enquadrada como crime por mais de um motivo. Mesmo que você se excite com as cenas picantes, é bom ter em mente que, ao assistir, se torna necessário identificar imediatamente os indícios de uma relação tóxica na história. Sobre isso, não há discussão, avalia Lina:
– A palavra-chave é consentimento. Se alguém voluntariamente está se colocando nesse tipo de situação, teoricamente, não é abuso. Digo teoricamente porque há mulheres que, emocionalmente, não veem os sinais de abuso no relacionamento, que se sentem oprimidas e permitem essas ações dentro de um contexto abusivo. Por isso, a manutenção da rede de apoio é importante na vida real, serve como alerta. No filme, não há consentimento em diferentes situações.
Se excitou? Não se culpe!
Ok, mas você viu o filme e achou bem excitante. O Massimo é o cara dos seus sonhos e, lá no fundo, você até gostaria de ser dominada pelo mafioso assim como Laura. Desejar isso não é necessariamente um problema, desde que você entenda que a ação pertence exclusivamente à imaginação, explica a psicanalista Isadora:
– O filme é uma ficção, você pode entrar e sair da história. Quando vamos assistir histórias de guerra, de super-heróis, entramos e saímos da história, fica na fantasia. Nem todas gostam de um homem como aquele, mas ele representa o macho alfa, há cenas belas, festas, casas, muitos elementos que compõem essa atração pela história. Se torna um passatempo, um exercício de fantasia mesmo.
Já a psicóloga Fabíola identifica uma tendência das mulheres a se fixarem no "lado bom" do enredo, o que encobre o abuso exposto na trama e gera interesse pela parte sexual em si. Aquelas que se sentem atraídas pela história do filme não devem se culpar, tranquiliza a especialista:
– Ninguém olha e pensa: "Ah, quero ter um relacionamento abusivo". As pessoas se sentem atraídas pelo contraponto, que seja a dedicação, a atenção, o cuidado, que no geral vêm excessivos numa relação abusiva como a do filme, está dentro de um contexto. O relato verbal é de muito amor, isso faz com que vire quase um fetiche.
Fetiche com limite?
A sexóloga Lina é taxativa sobre o tema:
– Nem tudo o que nos excita queremos realizar. Às vezes, o que temos no mundo da fantasia não significa absolutamente nada do que queremos na vida real.
Ter pensamentos erotizados não é um problema e, muitas vezes, acaba como ótima saída para relacionamentos de longo prazo. No filme, mais do que a questão do sequestro e da relação tóxica em si há uma referência a um desejo comum às mulheres, que é de se sentir uma "peça especial", a ponto de alguém cometer um ato insano, de ser idolatrada pelo parceiro.
Nem tudo o que nos excita queremos realizar. Às vezes, o que temos no mundo da fantasia não significa absolutamente nada do que queremos na vida real.
LINA WAINBERG
psicóloga e sexóloga
A psicóloga Fabíola acredita que, quando a mulher tenta trazer essa cena excitante para a realidade, precisa esbarrar na palavra consentimento - é o limite que se desenha. Mas o fetiche também se torna um problema quando impacta sua vida social de outras formas, ressalta a especialista:
– O filme trouxe a oportunidade de pensar sobre quais são os seus fetiches e ver como estão as relações na prática. O fetiche em geral fica na cama, mas a dinâmica da relação é parte do dia a dia. Como sou para além da vida sexual? Sou uma pessoa que domina ou sou dominada na cama e levo isso para o dia a dia na relação?
De olho nos detalhes
Uma relação abusiva não se resume a estupro, sequestro e violência. No longa, talvez você tenha ficado envolvida demais para notar alguns detalhes importantes, todos evidências de um relacionamento tóxico. Em mais de uma cena, o protagonista controla o tipo de roupa que Laura usa, se está curta ou provocante demais. Faz comentários inapropriados e a culpa quando um cara decide agarrá-la em uma festa. Tem ataques de ciúme disfarçados de excesso de amor e zelo. Ao assistir, não deixe essas situações passarem despercebidas.
Se uma relação está baseada em um vínculo destrutivo, cerceando liberdades, vai impactar a saúde mental.
ISADORA SEVERO GARCIA
psicanalista
– Uma relação tóxica faz mal à saúde, a física e a emocional. Se uma relação está baseada em um vínculo destrutivo, restringindo autonomia, cerceando liberdades, ela vai impactar a saúde mental. Quando ele começa a determinar com quem ela fala, onde vai, o que veste. Isso é uma violência – defende Isadora.
Outro ponto importante são os traços da Síndrome de Estocolmo que estão presentes no enredo. Refém, a mulher acaba se apaixonando pelo sequestrador e se colocando voluntariamente sob sua autoridade. Se qualquer pessoa passasse pela mesma situação que Laura fora das telas, estaria mergulhada em profunda angústia. Não haveria o clima sexual criado pelo enredo, explica Lina:
– Temos que entender que é ficcional e que, na vida real, isso não aconteceria. Não estaríamos excitadas, estaríamos com medo. O medo dela não aparece no filme, chegam a matar uma pessoa na frente dela e ela não demonstra nada.
Levante discussões
Independentemente da sua opinião sobre o filme – se gostou ou não, se sentiu excitação ou teve repulsa –, a dica das especialistas é encarar a repercussão do longa como ponto de partida para uma discussão mais ampla. Há muitas mulheres em relacionamentos abusivos que não conseguem classificar a relação como tóxica.
– A ideia é cada pessoa que assistir ao filme não comprar a história de uma forma passiva, questionar o que significa isso, esse tipo de relacionamento, o que considera abuso. O que vale, no fim das contas, é levantar esse tipo de debate – diz a psicóloga Fabíola.