Na quarentena sem fim que os brasileiros vivem por causa do coronavírus, é comum que o tédio faça os dedos apertarem com mais frequência as teclas de atualização das redes sociais, como o Instagram, por exemplo. Vídeos e fotos da vida dos outros funcionam como janelas para o mundo do qual ficamos apartados, mas há um problema: tudo parece muito perfeito.
Apartamentos com gatos peludos e plantas bem cuidadas, posturas de yoga para mostrar que a saúde está em dia, aparência ok, quem sabe até um amor em tempos em que o beijo descomprometido é arriscado. Há um alento para quem vive dias piores e não se encaixa nesse cenário: os quadrinhos da @estarmorta.
Gaúcha de Rio Grande radicada em São Paulo, Bruna Maia começou a publicar os desenhos no Instagram antes da pandemia, mas foi durante o isolamento que a arroba ganhou muito mais seguidores. Passou a desenhar por acaso, depois de uma recomendação da psicóloga para "dançar, pintar ou desenhar" a fim de curar uma depressão. Recorreu a tutoriais no YouTube para aprender os primeiros traços e botou no papel anseios e reflexões de uma mulher independente, sarcástica e cheia de dilemas, em sintonia com os novos tempos.
O resultado são quadrinhos que mais parecem rascunhos, como se tivessem sido feitos durante uma aula enfadonha, muito apropriados para as mulheres e os homens a que se propõe retratar: adultos que são eternos jovens, em crise com as relações abertas nas quais dizem acreditar, equilibrando a carência afetiva com a oportunidade irresistível do sexo fácil, a cobrança por realização profissional com a sensação de ser um verdadeiro fracasso.
Como sessões de terapia, @estarmorta expõe as ciladas e autossabotagens que costumamos nos aplicar. Um respiro em uma linha do tempo cheia de sucesso, beleza, saúde, alegria.
— Na internet é tudo muito igual. Você pega um design do Canva e os anúncios são iguais, as decorações são iguais, tudo é perfeitinho. Tudo tem um filtro para deixar mais bonito, e acho que as pessoas cansam um pouco disso. É aí que meu desenho entra como uma coisa torta, imperfeita, e gera quase um alívio visual, mesmo — diz Bruna.
Parte dos desenhos do Instagram está em seu primeiro livro, Parece que piorou, lançado pela Quadrinhos na Cia, um dos principais selos de quadrinhos no Brasil. O título combina com a pandemia, as personagens vivem os dramas mais profundos dentro de casa, mas o livro é sobre os millennials: suas confusões emocionais e expectativas frustradas. Também há certo pessimismo e crítica social. O principal alvo é o machismo, mas sobram farpas para o feminismo e quem posa de militante para a câmera do iPhone:
— A gente cresceu com a ideia de que tudo estava melhorando. Você pega os anos 1990 e diziam que estávamos numa era de paz, democracia, crescimento econômico, liberdade nos relacionamentos. Toda essa promessa de que ia ser tudo massa. De repente, tudo piorou: ascensão da extrema direita, crise do capitalismo. E aí você olha para os relacionamentos - e eu sou a favor dos relacionamentos líquidos - e eles estão nessa performance de indiferença, e as mulheres se veem nessa posição em que o cenário é todo feminista, mas elas continuam tendo que cuidar do homem em casa. É um relacionamento dos anos 50 com um pôster da Simone de Beauvoir na sala.
Falhos também no aspecto psicológico, os personagens mal acabados de Bruna lhe renderam o apelido de "expoente da estética da imperfeição". Mas até aí existe um deboche.
— Eu não faço um desenho feio por escolha estética, é porque não sei desenhar, mesmo. Hoje até tenho um pouco mais de técnica e desenho tosco por escolha — confessa.
Quase sem querer, a @estarmorta mostra que somos todos rascunhos do que gostaríamos de ser. Ao menos em uma arroba a sinceridade faz sucesso.