Como aquecimento para o lançamento de Coringa: Delírio a Dois (2024), que tem sessões de pré-estreia nesta quarta-feira (2) e entra em cartaz nos cinemas na quinta (3), a Tela Quente desta segunda (30), às 23h20min, na RBS TV, exibe Coringa (2019). O filme dirigido por Todd Phillips ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza e concorreu em 10 categorias do Oscar, incluindo a principal, a de direção e a de ator, na qual Joaquin Phoenix foi premiado. Com U$ 1,07 bilhão arrecadados, tornou-se o recordista de bilheteria entre as produções para maiores de 18 anos — marca que foi superada recentemente por Deadpool & Wolverine (2024). E virou um fenômeno de crítica também, a ponto de suscitar interpretações políticas opostas: uns consideraram alinhado à esquerda, outros, à direita.
Hoje, eu admito que exagerei no título da coluna à época da estreia em Porto Alegre: "Coringa é o filme errado na hora errada". Estava preocupado com o retrato do maior vilão do Batman como um justiceiro inevitável, um anti-herói ou até, pasme, o herói de que o povo precisa. Fiz coro a críticos dos Estados Unidos que usaram palavras pesadas como "irresponsável" e "tóxico". Sigo tendo objeções, mas agora reconheço uma outra enorme virtude da obra, para além da atuação de Phoenix, da música composta pela islandesa Hildur Guðnadóttir, também oscarizada, e da ambientação calcada na cinematografia de Martin Scorsese (uma inspiração, aliás, para a própria trama escrita por Phillips e Scott Silver): justamente a capacidade de estimular uma multidão de gente ao debate.
Alerto que haverá SPOILERS.
O personagem Coringa é quase tão velho quanto o Batman. Surgiu nos gibis da DC Comics em 1940, apenas um ano depois do Homem-Morcego. Seu icônico figurino (o terno roxo, os cabelos verdes, o rosto branco emoldurado por um sorriso sinistro) permanece praticamente inalterado desde então, mas sua origem, suas motivações e sua personalidade (ora mais insano, ora mais maquiavélico, ora mais debochado, ora mais sanguinário) são fluidas, como percebido nas quatro encarnações cinematográficas anteriores: Cesar Romero (nos anos 1960), Jack Nicholson (1989), Heath Ledger (2008) e Jared Leto (2016).
Cada um deu uma cara diferente ao personagem, porque ele é, de fato, um curinga, uma carta capaz de imprimir os fantasmas de seu contexto histórico e de mudar a sua própria história. Não há um passado definitivo para ele, que é a personificação do caos e da imprevisibilidade perversa.
É um vilão, portanto, mas, no filme de Todd Phillips, lançado na era da pós-verdade, em que fatos científicos antes inquestionáveis passaram a gerar desconfiança, um psicopata homicida ressurge com ares de líder revolucionário. Em um tempo manchado pelo sangue dos frequentes massacres promovidos por homens brancos e heterossexuais ressentidos, o filme assume o risco de não apenas justificar, mas também glorificar (por meio de recursos habitualmente associados ao heroísmo, como a câmera lenta, a música épica e a aprovação popular) um homem branco e heterossexual ressentido que prefere acreditar em uma narrativa delirante em vez de fatos e que vê a explosão da violência como única resposta e única forma de empoderamento.
— O que você ganha quando cruza um doente mental com uma sociedade que o abandona e o trata como lixo? — perguntará o protagonista em rede nacional de TV.
Desde a primeira cena somos instados a sentir pena e a compactuar com a revolta de Arthur Fleck, um fracassado aspirante a comediante que é interpretado por Phoenix com entrega e invenção: ele emagreceu mais de 20 quilos para o papel, a fim de tornar seu corpo um retrato da mente perturbada, contorcida e imponderável do personagem, e inspirou-se em um distúrbio neurológico real para criar a risada sofrida de seu Coringa. Trabalhando como palhaço de aluguel para visitas a hospitais ou publicidade ambulante de pequenas lojas, Arthur é importunado, ofendido, roubado e espancado por um bando de pivetes. Mais tarde, é o Estado que lhe dará uma rasteira, cortando o atendimento psiquiátrico e o fornecimento de sete remédios. Também saberemos que ele foi uma criança adotada e mal-amada, encontrada pela assistência social amarrada a um radiador, malnutrida e com um severo ferimento na cabeça. Todd Phillips parafraseia o emblemático gibi A Piada Mortal (1988), escrito por Alan Moore e desenhado por Brian Bolland. Na HQ, o Coringa diz que basta um dia ruim para reduzir o mais são dos homens em um lunático. No filme, Arthur teve, ano a ano, 365 dias ruins.
Coringa vai intercalando esses golpes da vida com cenas em que Arthur sobe os degraus de uma íngreme escadaria — tal qual uma via-crúcis — ou mostra ter um bom coração. Ele cuida da mãe, Penny (Frances Conroy), com quem mora, dança ao som de canções antigas e assiste a um programa de TV do estilo talk-show, o do apresentador Murray Franklin, interpretado de Robert De Niro. O veterano ator dá rosto à roupagem artística que Coringa busca vestir. Realizador da trilogia cômica Se Beber, Não Case (2009-2013), Phillips faz uma série de referências a dois filmes dirigidos por Scorsese, Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), a começar pela estética e pela cenografia, em uma Gotham City de 1981 que muito se parece com a Nova York em que essas histórias se passam.
Em Taxi Driver, De Niro encarnou o taxista Travis Bickle, com quem Arthur Fleck compartilha a crescente perturbação pelo que considera o declínio moral do seu entorno, a incapacidade de estabelecer conexão emocional com outras pessoas e a obsessão por uma personagem feminina — a vizinha Sophie (Zazie Beetz). Quando críticos como Stephanie Zacharek, da revista Time, disseram que o Coringa de Phillips poderia ser "o santo patrono dos incels" (os celibatários involuntários, homens que, por motivos variados, acabam adotando ou resignando-se à abstinência sexual), houve quem, provavelmente sem ter assistido ao filme, saísse em defesa do vilão, citando o relacionamento de Arthur com Sophie. Mas esse relacionamento não existe. É, como ocorre a muitos incels, uma fantasia que o protagonista alimenta — e um bom truque aplicado pelo diretor.
A ligação com O Rei da Comédia ilustra a inversão de papéis que Coringa propõe. No filme de Scorsese, é Robert De Niro quem vive um sujeito que se acha engraçado o suficiente para aparecer no programa de TV de uma celebridade do humor (Jerry Lewis). Nos quadrinhos do Batman, Thomas Wayne costuma ser retratado como um médico filantropo, um exemplo de humanismo e retidão para o filho, Bruce (ainda que um pai distante). No filme de Phillips, aparece como um milionário arrogante que, enfiado em um smoking, ri da classe trabalhadora (vide a cena em que a elite assiste a Tempos Modernos, de Charles Chaplin) e que se lança como candidato a prefeito com um discurso presunçoso: "As pessoas não veem, mas eu sou a esperança delas". Mas faltou presunção por parte de Thomas na sequência em que, pela milésima vez, assistimos ao assassinato dos pais de Bruce, a tragédia particular que motiva o surgimento do Batman. Se Gotham estava ardendo em tumultos por causa de uma desastrada perseguição policial em um trem, à tarde, um candidato a prefeito deveria presumir que não era uma boa sair à noite para ir ao cinema com a família.
Nesse momento, a figura do Coringa já é cultuada pela população, como um símbolo de uma luta de classes: "Mate os ricos!", diz um cartaz empunhado por um cidadão escondido atrás de uma máscara de palhaço. É um movimento derivado do episódio da transformação de Arthur, também transcorrida dentro de um metrô. Quando três yuppies começam a molestar uma jovem, Arthur, nervoso, não consegue controlar sua risada. Então, é submetido a mais uma sessão de humilhação e pancadaria. Só que desta vez ele está armado. Arthur mata os três e deixa-se embriagar pelo poder. Dança no banheiro, "beija" Sophie, até suas piadas ficam melhores.
— Nem sabia se eu realmente existia — ele reflete. — Mas eu existo, e as pessoas estão começando a perceber.
A afirmação remete aos atiradores que atacam escolas, shoppings, boates. Homens solitários que se sentiam ou eram tratados como invisíveis antes de colocarem uma arma na mão e uma ideia na cabeça: depois que eu matar essas pessoas, eles vão saber quem eu sou.
O Coringa avisa sobre como, coletivamente, negligenciamos e estigmatizamos alguns dramas individuais:
— A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse uma.
O Coringa cobra nossa falta de empatia:
— Ninguém pensa em como é ser o outro cara!
O Coringa ameaça sobre iminentes tragédias:
— As pessoas estão cansando de fingir!
É um grito de guerra, um convite para que todos exorcizem seus demônios interiores lançando o inferno sobre a Terra. Não à toa, nos EUA, o FBI (a polícia federal) notificou o Exército sobre postagens de extremistas em redes sociais, e grandes redes de cinema (Landmark e AMC) proibiram a entrada de espectadores com máscaras, maquiagem ou qualquer objeto que esconda o rosto. Temia-se a possibilidade de ataques como aquele perpetrado durante uma sessão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) em Aurora, no Colorado. Munido de um rifle e duas pistolas, James Holmes, 24 anos e sem amigos, matou 12 pessoas e teria se autodenominado como Coringa. Familiares dos mortos enviaram uma carta à produtora Warner, preocupados com o impacto do filme (mas não pediram censura nem adiamento).
Todd Phillips sempre esteve ciente da efervescência de Coringa. Em entrevista dada em 2019, ele disse que "certamente não é um filme político". O personagem diz a Murray Franklin que não é um político e que só quer fazer as pessoas rirem — como se fosse um lembrete de que esta é apenas uma obra de entretenimento. Há outras salvaguardas: depois de justificar a violência de Arthur, o diretor exagera essa violência. Mas, em que pese a brutalidade empregada, o estrago já está feito. E não ajuda o fato de que, mesmo na explosão de agressividade, o personagem demonstre ter um código de ética: ele poupa o único colega de trabalho que o ouviu. Só pune quem "merece" ser punido, como se espera não de um vilão, mas da Justiça.
Coringa não é, como pretendia seu diretor, apenas um filme que mostra como a sociedade, ao não ser empática, pode produzir monstros; mas, sim, um filme que mostra a violência como um caminho para a afirmação da identidade, da redenção, da luz. Não por acaso, termina com um fade-out às avessas: depois que o Coringa tinge com seus pés ensanguentados o branco do corredor de um hospício, depois que ele dança, outra vez, ao som de uma música bacana e em câmera lenta, a tela se ilumina por inteiro, fica completamente imaculada antes que possamos ver o vilão contido.
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