Neste sábado, 21 de setembro, fãs de todo o mundo celebram o Batman Day, uma data marqueteira inventada pela DC Comics em 2014, ano do 75º aniversário do personagem criado pelo desenhista Bob Kane e pelo roteirista Bill Finger. No Brasil, a comemoração inclui o relançamento nos cinemas, nesta quinta-feira (19), de dois filmes do Homem-Morcego: o primeiro do diretor Tim Burton, que estreou em 1989 e que, em Porto Alegre, pode ser visto no GNC Praia de Belas, às 14h, e o primeiro do cineasta Matt Reeves, que saiu em 2022 e tem sessões no Cineflix Total, às 21h10min, no Cinemark Barra, às 14h30min.
Lançado no cinquentenário do super-herói de Gotham City, mais de 30 anos depois de sua última aventura nas telas — o filme de 1966 decalcado do popular seriado de TV —, Batman (1989) promoveu sua ressurreição cinematográfica (todas as suas encarnações são relembradas e analisadas no meu livro O Morcego e a Luz, publicado em 2023 pela BesouroBox). Naquela década de 1980, o personagem vivia uma fase elogiadíssima nos quadrinhos, graças a obras como O Cavaleiro das Trevas (1986), de Frank Miller, Ano Um (1987), de Miller com David Mazzucchelli, A Piada Mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland, Asilo Arkham (1989), de Grant Morrison e Dave McKean, e Gotham City 1889 (1989), de Brian Augustyn, Mike Mignola e P. Craig Russell.
Mas as primeiras notícias sobre o filme de Tim Burton causaram apreensão nos fãs. Mais uma vez, a exemplo do que sentiam em relação à série de TV da década de 1960, eles acusavam uma dessintonia entre o Batman que enxergavam e o Batman que veriam. Afinal, embora Burton já tivesse demonstrado um gosto pelo macabro em curtas como Vincent (1982) e Frankenweenie (1984) e no longa Os Fantasmas se Divertem (1988), seu nome estava associado a comédias, e não às tramas sérias e violentas desses gibis.
Os roteiristas Sam Hamm e Warren Skaaren, por sua vez, tinham pouca ou nenhuma experiência com filmes de ação — e muito menos com super-heróis. Pior foi a escolha do ator para vestir o uniforme: Michael Keaton, igualmente mais ligado a papéis cômicos e definitivamente sem o physique du rôle.
A Warner apostou alto — o orçamento pulou de US$ 30 milhões para US$ 48 milhões — e riu por último: com os US$ 411,5 milhões arrecadados, Batman tornou-se a segunda maior bilheteria mundial da temporada, atrás apenas de Indiana Jones e a Última Cruzada (US$ 474,1 milhões) e à frente de De Volta para o Futuro II (US$ 331,9 milhões).
O sucesso nos cinemas, como acontecera com o seriado sessentista, veio acompanhado de um sem-número de produtos licenciados. O logotipo do filme, baseado no emblema que o personagem usou nos quadrinhos de 1966 a 2000, estampou camisetas, skates, toalhas de praia, caixas de cereais etc. A lista de brinquedos incluiu miniaturas do Batmóvel e do Batwing, o estilizado avião do herói. Vendeu-se mais de US$ 1,5 bilhão na segunda Batmania, que era embalada por Batdance, deliciosa e diversificada canção de Prince que alcançou o número 1 nas paradas radiofônicas dos Estados Unidos. O astro pop produziu um disco inteiro, que liderou a lista da revista Billboard por seis semanas consecutivas. Mas a trilha sonora oficial — e que também é bem marcante — foi a composta por Danny Elfman, com quem Tim Burton estabeleceu uma longa parceria.
Trinta e cinco anos depois, Batman é um filme que envelheceu mal. Sua melhor ideia continua potente, sendo em parte importada de A Piada Mortal, em parte uma invenção duramente criticada pelos leitores dos quadrinhos. O próprio Homem-Morcego ajuda a criar um monstro na cidade, o Coringa de Jack Nicholson — que é insano, divertido e cheio de frases de efeito ("Esta cidade precisa de um enema!"), mas é carta de baralho infantil perto do oscarizado Coringa de Heath Ledger em O Cavaleiro das Trevas (2008) e da versão de Joaquin Phoenix em Coringa (2019), também ganhador do Oscar. E foi o Coringa, quando ainda era um gângster chamado Jack Napier, que assassinou os pais de Bruce Wayne.
De uma tacada só, essa ideia ilustra como a violência é cíclica e como Batman e Coringa estão para sempre interligados, serão eternos espelhos um do outro (a ordem e o caos).
"Simbolicamente", escreveu o saudoso crítico e psiquiatra Luiz César Cozzatti na ZH de 1º/11/1989, "Batman e Coringa representam faces de uma mesma moeda, nascem um do outro. Assim, esta aventura fascinante, de imaginação delirante, que incorpora e soma informações da arte de todos os tempos, transforma-se numa parábola da dualidade humana. Numa leitura freudiana, Batman seria o superego, e o Coringa, o id, a instância primitiva, a perversidade infantil". Cozzatti enxergara atrativos desde os créditos de abertura, "apresentados contra as sombrias imagens de um labirinto, que se verá depois ser a marca do personagem, sugerindo tratar-se de uma aventura interior, vivenciada nas trevas do inconsciente".
Já para Roger Ebert (1942-2013), um dos mais famosos críticos dos Estados Unidos, Batman foi "um triunfo do design sobre a trama, do estilo sobrea substância". Premiada com o Oscar, a direção de arte assinada por Anton Furst e Peter Young recriou nos gigantescos estúdios Pinewood, em Londres, a primeira personagem do filme — a própria Gotham City, assim descrita no roteiro: "Ângulos rígidos, sombras rastejantes, densa, lotada, sem ar, um emaranhado aleatório de aço e concreto, como se o Inferno tivesse irrompido pela calçada e continuasse crescendo". Os designers juntaram à receita o gótico tardio da inacabada Sagrada Família de Gaudí, em Barcelona, o expressionismo dos cenários de Metrópolis (1927), a arquitetura da Alemanha nazista, o futurismo do japonês Shin Takamatsu, os arranha-céus de Chicago, as escadarias de Um Corpo que Cai (1958), a fumaça incessante de Blade Runner (1982)...
"Eu não acredito em cinema verité (o cinema verdade). Você deve criar sua própria verdade", justificou Furst em citação publicada no livro Batman: The Complete History (1999), do jornalista e escritor estadunidense Les Daniels. Daí também que o Batmóvel é menos um carro do que uma criatura, um veículo anatomicamente exagerado. Daí também que o uniforme do Batman não siga o padrão dos quadrinhos: é todo preto, à exceção da elipse amarela com o símbolo do morcego em seu peito, aludindo ao tom de O Médico e o Monstro (1886) pretendido por Tim Burton, interessado em "retratar o lado dark" do personagem.
À luz dos filmes mais recentes, contudo, Batman é raso psicologicamente, e a degradação de Gotham é tão edulcorada, que remete a um conto de fadas. Por sua vez, as cenas de ação, com enquadramentos confusos, montagem atrapalhada e uma pífia perseguição automobilística, deixam muito a desejar mesmo para época: já havíamos visto, por exemplo, a trilogia Mad Max (1979-1985), Aliens: O Resgate (1986), Máquina Mortífera (1987) e Duro de Matar (1988) — aliás, Bruce Willis certamente teria sido um Batman menos insosso do que o de Michael Keaton. Mas iria sofrer igualmente com o traje duro de dobrar, que limitava drasticamente os movimentos do Homem-Morcego. "Até hoje, um quadril não está direito por causa da cena em que chuto aquele cara no telhado. Foi muito difícil colocar meu pé tão alto. Era como se 50 mil elásticos te prendessem", descreveu o ator no livro de Les Daniels.
No campo dos coadjuvantes, a fotógrafa Vicki Vale, vivida por Kim Basinger, tenta atrair o foco para o trauma de infância de Bruce Wayne, mas seu papel é opaco demais. O repórter interpretado por Robert Wuhl foi imbuído de disparar uma piada a cada frase: nenhuma acerta o alvo.
Mas Batman, como os números mostraram, acertou o alvo. E mais do que isso: mirou o futuro.
Não foi a primeira franquia de Hollywood (antes houve, só para citar dois exemplos de peso, Star Wars e Indiana Jones), mas, segundo artigo do jornalista Scott Mendelsson publicado na Forbes em 2014, "Batman foi o modelo para o sucesso de bilheteria moderno". Foi baseado em um conteúdo preexistente, como depois vimos acontecer com Missão: Impossível, Jurassic Park, Piratas do Caribe, Transformers e o próprio Universo Cinematográfico Marvel; foi precedido por uma campanha de marketing de saturação massiva (a exemplo do trabalho feito com Barbie) e ganhou tanto dinheiro, que a sua qualidade se tornou quase irrelevante (vide Velozes e Furiosos). Ao mesmo tempo, embora também não fosse novidade, a indignação dos fãs diante da escalação de Michael Keaton antecipou a fúria online que assola a cultura pop. Como que reafirmando a ideia de violência cíclica, uma das vítimas mais recentes desses ataques foi justamente o mais novo Batman, Robert Pattinson, astro da aventura dirigida por Matt Reeves.
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