Os fãs de Família Soprano (The Sopranos, 1999-2007) ganharam um baita presente no aniversário de 25 anos da melhor série de todos os tempos: a plataforma Max lançou neste mês o documentário em duas partes Um dos Nossos, protagonizado por David Chase, criador da obra vencedora de 21 troféus no Emmy, incluindo dois de seriado dramático (2004 e 2007), três de ator (James Gandolfini, em 2000, 2001 e 2003) e três de atriz (Edie Falco, em 1999, 2001 e 2003). Na prateleira de conquistas, também há cinco Globos de Ouro, oito prêmios do Sindicato dos Atores dos EUA e a escolha pelo Sindicato dos Roteiristas, em 2013, como a mais bem escrita da história, à frente dos clássicos Além da Imaginação (1959-1964) e Seinfeld (1989-1998).
Família Soprano bagunçou a cabeça do espectador desde o início até o grand finale, quando se recusou a explicitar o que aconteceu com o mafioso Tony (papel de James Gandolfini), Carmela (Edie Falco) e seus filhos, Meadow (Jamie-Lynn Sigler) e A.J. (Robert Iler), naquele restaurante de New Jersey depois que, subitamente, a tela ficou preta. Foram assassinados, vítimas de um acerto de contas? O FBI apareceu para levar preso o homem que usava uma empresa de coleta de lixo como fachada para seus negócios sujos, geralmente fechados na boate Bada Bing? Viveram infelizes para sempre? Cada um de nós que acredite na sua própria hipótese, parafraseando o título da canção da banda Journey que embala a cena, Don't Stop Believin'.
Como a única certeza da vida é a morte, a família fictícia entrou em luto em 19 de junho de 2013. Aos 51 anos, Gandolfini sofreu uma parada cardíaca no Hotel Exedra, em Roma, e foi submetido a 20 minutos de tentativas de ressuscitação mesmo depois de chegar já morto ao hospital Umberto I. Estava na Itália para ser homenageado no festival de cinema de Taormina, na Sicília, território mítico da máfia. Foi irônico, porque o que Gandolfini fez na pele de Tony Soprano foi justamente tratar de desmitificar a máfia.
Se a trilogia cinematográfica O Poderoso Chefão (1972, 1974 e 1990) glamorizou a figura dos mafiosos — a ponto de influenciar os criminosos da vida real —, se a partir da saga dos Corleone passamos a vê-los metidos em ternos bem cortados, ostentando riqueza e circulando pelas altas esferas do poder, com Família Soprano eles se tornaram muito mais humanos e medíocres. Seus créditos de abertura já indicavam um rumo diferente: deixamos a costumeira Nova York e pegamos a ponte para New Jersey dentro da Chevy Suburban pilotada por Tony. A trilha sonora, Woke Up This Morning (1997), da banda britânica Alabama 3, foi selecionada a dedo. Versos da letra davam pistas sobre a saúde mental do protagonista: "Você nasceu sob um signo ruim / com uma lua azul em seus olhos" (em inglês, blue moon é um símbolo de tristeza e solidão). A música, uma mistura de hip-hop com samples do blueseiro Howlin' Wolf (1910-1976) e a participação de um coral gospel, aludia à mescla de gêneros da série: algumas das histórias iam do policial com pano de fundo histórico ao drama existencial. Outras alternavam sequências de sonho com explosões de violência.
Com duas horas e 40 minutos de duração, Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano (Wise Guy: David Chase and the Sopranos, 2024) tem direção de Alex Gibney, ganhador do Oscar de melhor documentário por Um Táxi para a Escuridão (2007) e indicado por Enron: Os Mais Espertos da Sala (2005), realizador de Cidadão K. (2019) e O Mundo vs. Boris Becker (2023). O diretor recebe Chase, 79 anos completados no dia 22 de agosto, em um cenário que recria o consultório da doutora Melfi, a psiquiatra interpretada por Lorraine Bracco que atende o protagonista da série.
A ambientação não é apenas uma brincadeira, nem o começo do documentário é somente uma referência ao primeiro episódio de Família Soprano. Colocar Chase na condição de "paciente" e fazê-lo lembrar de sua infância como filho único de uma família ítalo-americana de New Jersey tem tudo a ver com o próprio nascimento do seriado. Enquanto ele resgata momentos vividos e lugares visitados, a edição funde admiravelmente imagens de arquivo com cenas da série. E logo entendemos como surgiu Livia, a mãe megera de Tony encarnada por Nancy Marchand (1928-2000).
— Minha mãe era difícil — afirma Chase. — Ela trabalhava, voltava, fazia o jantar, mas tinha medo e raiva de todo mundo. E ela tinha tantas coisas negativas a dizer sobre mim.
O pai também o menosprezava, e na adolescência David teve depressão e ataques de pânico. Não é de estranhar que o sonho de Chase fosse atravessar o país para virar diretor de cinema na Califórnia. E não é de estranhar que Família Soprano pareça menos uma série do que uma coleção de pequenos filmes (alguns episódios chegavam a ter 72 minutos de duração), às vezes com coadjuvantes alçados a protagonistas.
Depois de experiências medonhas, como ser assistente de direção em The Cut-Throats (1971), de John Hayes, sobre um forte nazista habitado por prostitutas alemãs ("Um pornozinho", ele diz), ou escrever o roteiro de O Túmulo do Vampiro (1972), do mesmo diretor, David Chase acabou indo trabalhar na televisão. Disputou oito vezes o Emmy como produtor ou roteirista das séries Arquivo Confidencial (1974-1980), que lhe valeu um troféu de melhor drama, Northern Exposure (1990-1995) e I'll Fly Away (1991-1993), sendo premiado também pelo script do telefilme O Difícil Regresso (1980). Mas não dá para dizer que fosse uma grande figura da TV. Aliás, o primeiro seriado que criou, Almost Grown (1988-1989), em parceria com Lawrence Konner, foi tirado do ar quatro episódios antes do final da primeira e única temporada, por causa do fracasso de audiência.
Família Soprano foi a série certa na hora certa. Na verdade, estava à frente de seu tempo, tanto no conteúdo quanto na forma, mas isso só foi possível porque David Chase encontrou o lugar certo: a HBO. O canal a cabo estadunidense estava dando seus primeiros passos no mundo dos seriados, diferenciando-se por não restringir violência, sexo, drogas e linguagem obscena — como serviço por assinatura, não precisava dos intervalos comerciais tradicionais, logo, não sofria pressão de patrocinadores conservadores ou moralistas.
A HBO já tinha lançado Oz (1997-2003), sobre o cotidiano de uma prisão de segurança máxima, e Sex and the City (1998-2004), sobre as aventuras sexuais de quatro nova-iorquinas, mas ainda não havia se firmado como o território por excelência do entretenimento adulto na TV. Com Família Soprano, conseguiu a tríplice coroa: sucesso de público, de crítica e no circuito de premiações. De cara, foram 16 indicações ao Emmy, com quatro vitórias. Chase recebeu o troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA pelo primeiro episódio — depois, ele se concentraria nos roteiros e na produção, só voltando a dirigir no 86º e último capítulo, Made in America (2007).
A proeminência logo virou alvo de zombarias. O documentário recupera manchetes falsas criadas pelo programa humorístico Saturday Night Live: "Comparado ao cara que criou Família Soprano, Michelangelo é um imbecil", "Família Soprano vai substituir o oxigênio como o que precisamos para ficar vivos".
O espectador foi pego em cheio porque as tramas boladas por Chase, Terence Winter, Mitchell Burgess e Matthew Weiner, entre outros autores, e dirigidas principalmente por Timothy Van Patten, John Patterson, Allen Coulter e Alan Taylor uniram, ou melhor, fizeram colidir dois mundos. De um lado, havia um drama familiar que convida à identificação com os personagens. Do outro, o nosso fascínio pela violência e pelo crime.
Tony Soprano divide-se entre duas famílias, em ambas tendo mais perrengues do que alegrias. Uma é a sua própria. A outra é a da máfia, na qual laços de sangue não garantem harmonia, vide o conflito com o tio Junior (Dominic Chianese). (E quem quiser se aprofundar no passado dos Sopranos pode assistir ao filme Os Muitos Santos de Newark, lançado em 2021 e ambientado nas décadas de 1960 e 1970, como um prólogo da série; Michael Gandolfini, um dos três filhos de James Gandolfini, encarna uma versão jovem de Tony.)
Não à toa, Tony sofre ataques de ansiedade e de pânico que acabam o levando a procurar a psiquiatra Melfi, já na estreia. Um desavisado pode achar que David Chase seguiu a trilha aberta por Máfia no Divã (1999), comédia dirigida por Harold Ramis e estrelada por Robert De Niro e Billy Crystal. Mas a série nasceu antes do filme, e o tom de Família Soprano não era cômico, apesar do sádico senso de humor que permeava as histórias e apesar das citações burlescas que alguns coadjuvantes faziam de O Poderoso Chefão — o Silvio Dante interpretado pelo roqueiro Steven Van Zandt repete uma célebre frase do Michael Corleone de Al Pacino: "Bem quando eu pensava que estava fora, eles me puxam de volta!".
Na primeira consulta, Tony profere um monólogo antológico, que mostra como o seu drama pessoal ilustra a crise de um país e que antecipou as discussões sobre masculinidade frágil:
— Hoje, todo mundo vai a psiquiatras e terapeutas. Vão falar dos problemas na Sally Jessy Raphael (uma apresentadora de talk show). O que houve com Gary Cooper (ator oscarizado pelo filme de guerra Sargento York, de 1941, e pelo faroeste Matar ou Morrer, de 1952)? Aquele tipo forte e quieto. Isso que era um americano. Ele não ligava para sentimentos. Só fazia o que tinha de fazer. Não sabiam que, se Gary Cooper ficasse sentimental, ele nunca mais calaria a boca. Disfunção isso, disfunção aquilo, disfunção vaffanculo!
Foi esse mesmo monólogo que garantiu o papel para James Gandolfini, embora ele tenha abandonado a audição no meio, como o documentário relembra. Outros atores haviam sido testados para ser Tony, incluindo Steven Van Zandt, John Ventimiglia, que virou o chef de restaurante Artie Bucco, e Michael Rispoli, que "chegou perto", diz David Chase, mas acabou relegado a fazer Jackie Aprile, o capo da máfia que morre nos episódios iniciais.
Um dos tesouros de Um dos Nossos é recuperar as gravações em vídeo desses testes de elenco. David Chase brinca que bastou um "Uau!" para Drea de Matteo ser escalada como Adriana La Cerva, a namorada do volátil, imaturo e narcisista Christopher Moltisanti (Michael Imperioli), um protegido de Tony. Lorraine Bracco conta que rejeitou interpretar Carmela Soprano porque já tinha feito a esposa de um mafioso em Os Bons Companheiros (1990), pelo qual disputou o Oscar de coadjuvante. A atriz também comenta sobre um momento capital de Família Soprano, o estupro da doutora Melfi, na terceira temporada:
— Surge uma bifurcação na estrada, e ela tem de fazer uma escolha.
Ao decidir não revelar a Tony, reprimindo seu desejo de vingança, Melfi mantém-se como um esteio moral para um espectador que desde o quinto episódio da temporada de estreia, o premiado College, tinha de lidar com uma dura realidade. Tony Soprano é o cara que, num brinde à família, estimula a gente a valorizar os pequenos momentos; num outro instante, é capaz de estrangular até a morte um sujeito, durante 90 segundos que pareceram uma excruciante eternidade.
— Os personagens eram fofinhos até que você devesse dinheiro para eles (ou os traíssem, no caso). Tínhamos de lembrar ao público quem eles realmente eram — diz o roteirista Terence Winter.
— A série sempre tinha algo para chocar alguém. Dava para desafiar os limites e deixar o público incomodado. Peço desculpas, mas era sem alerta de gatilho. O propósito era surpreender o espectador com sensações que talvez fossem desagradáveis e deixar que ele lidasse com elas. Essa, meu amigo, é a vida: não recebemos avisos quando algo terrível vai acontecer — sentencia a atriz Edie Falco.
A HBO não queria liberar a cena do estrangulamento, achava que os fãs se revoltariam contra Tony. David Chase disse acreditar que o público desaprovaria o personagem se ele não cometesse o assassinato a sangue frio, porque seria uma prova de fraqueza. Ao darem o sinal verde, os executivos também fizeram surgir uma linhagem de protagonistas anti-heroicos, cheios de falhas e pecados, que inclui o Jack Bauer de 24 Horas, o Nucky Thompson de Boardwalk Empire, o Walter White de Breaking Bad, o Don Draper de Mad Men, o Tommy Shelby de Peaky Blinders, o Dexter e o Ray Donovan das séries homônimas.
A liberdade concedida pela HBO foi muito bem aproveitada pela equipe criativa. Mas não se deve confundir liberdade com falta de disciplina, de organização, de rigidez. Para cada temporada, David Chase estabelecia a progressão de cada personagem. No documentário, ele conta que uma regra era descartar as cinco primeiras ideias — "Com a sexta, talvez, podemos trabalhar". Ainda que de vez em quando o pai dos Sopranos fosse deitar em um sofá (não para dormir, mas para desanuviar), havia uma tensão na sala dos roteiristas decorrente da sua postura. Como se vê em uma cena entre Tony e Silvio reproduzida em Um dos Nossos, passagens de Família Soprano refletiam a soberba e a implacabilidade de Chase.
— Essa sua atitude é o que fez de você um líder eficaz. Todos nós temos defeitos, até você. Sete pecados capitais, e o seu é... orgulho — diz Silvio.
— Com todo o respeito, você não tem ideia do que é ser o número 1. Cada decisão que você toma afeta todas as facetas de todas as outras coisas. É quase demais para lidar. E no final, você está completamente sozinho com tudo isso.
"É quase demais para lidar." Essa frase se aplica enormemente ao próprio James Gandolfini. Ele recebeu muitos prêmios e muito dinheiro (incluindo US$ 3 milhões para não substituir Steve Carell na série cômica The Office: a HBO queria preservar sua imagem como Tony Soprano). Mas o ator pagou um preço alto.
O primeiro custo foi a perda da privacidade. Gandolfini definitivamente não gostava do assédio dos paparazzi. Em relação aos fãs, oscilava: o documentário relembra momentos de ternura, mas também de agressões.
Em entrevistas de arquivo vistas no documentário, Gandolfini cita o desgaste físico, mental e psicológico das gravações, com horas de trabalho durante o dia, sete a oito páginas para memorizar durante a noite. Enumera táticas que adotava para gravar cenas nas quais Tony estava irritado, brigando ou matando: dormir pouco, andar com uma pedra no sapato, beber seis xícaras de café, bater a cabeça na parede.
— Como se recupera de um trabalho assim? — alguém pergunta.
— Bebendo — ri Gandolfini.
Seu alcoolismo, obviamente, não era motivo de piada nos bastidores de Família Soprano. Chegou-se ao ponto de tentarem uma intervenção, no apartamento de um executivo da HBO, mas Gandolfini deu as costas. O documentário não diz, mas consta que na sua última refeição antes da morte o ator tomou oito doses de bebidas alcóolicas, como rum, piña colada e cerveja.
— Ele abandonava a série dia sim, dia não. Ou talvez todos os dias — rememora Steven Van Zandt em Um dos Nossos. — A gente ia para um bar e era sempre a mesma conversa. Ficávamos bêbados e ele dizia "Chega, não vou voltar". E eu dizia "Ok, mas tem cem pessoas que dependem de você". E ele só concordava. Teve vezes em que ficou sumido por uns dias. Foi demais para ele.
David Chase, que caiu no choro ao discursar no velório de James Gandolfini, finaliza:
— Ele dizia que, para interpretar Tony Soprano, tinha de ir a lugares sombrios, que o machucavam. Talvez houvesse mais dele em Tony do que ele gostaria de admitir.
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