Estamos no mês do aniversário de 30 anos de Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption), que foi exibido pela primeira vez em 10 de setembro de 1994, no Festival de Toronto, no Canadá, e estreou no circuito comercial dos Estados Unidos 13 dias depois. Disponível na plataforma Max e para aluguel digital em Apple TV, Google Play e YouTube, o longa-metragem concorreu ao Oscar em sete categorias: melhor filme, ator (Morgan Freeman, que a partir de então passou a ser costumeiramente escalado como narrador), roteiro adaptado (pelo diretor Frank Darabont a partir de um conto de Stephen King), fotografia (o mestre Roger Deakins), edição (Richard Francis-Bruce), música original (Thomas Newman) e som.
Perdeu em todas — quatro delas para Forrest Gump (1994) —, mas conquistou de tal forma o coração do espectador que se tornou o número 1 na lista dos melhores de todos os tempos segundo os 83 milhões de usuários registrados do site IMDb, o maior banco de dados cinematográficos da internet. Pela ordem decrescente, está à frente de O Poderoso Chefão (1972), Batman: O Cavaleiro das Trevas(2008), O Poderoso Chefão: Parte II (1974), 12 Homens e uma Sentença (1957), A Lista de Schindler (1993), O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003), Pulp Fiction (1994), O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001) e Três Homens em Conflito (1966).
Essa adoração pode vir da identificação de Um Sonho de Liberdade com elementos da mais poderosa história mítica do Ocidente: a de Jesus Cristo. Andy Dufresne, o banqueiro interpretado por Tim Robbins que, em 1947, desembarca na fictícia Penitenciária Estadual de Shawshank para cumprir pena perpétua pelo assassinato de sua esposa e do amante dela, tem ares de uma figura messiânica, embora errante — tal qual o personagem de Willem Dafoe em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese. O contrabandista Red (Morgan Freeman), com quem Andy faz amizade, chega a dizer que ele tem uma aura que o protege na prisão. Há uma cena que parece recriação da Última Ceia, com o banqueiro obtendo cerveja para os 12 condenados. Não faltam Satãs: Bogs (Mark Rolston), o estuprador líder da gangue conhecida como As Irmãs; Norton (Bob Gunton), o severo diretor da cadeia; Hadley (Clancy Brown), o brutal capitão dos guardas. E Zihuatanejo, a cidade mexicana na costa do Oceano Pacífico que alimenta os sonhos de fuga do personagem de Robbins, pode representar o Paraíso.
O culto em torno de Um Sonho de Liberdade é tão grande, que os sets do filme no reformatório do Estado de Ohio, na época prestes a ser demolido, foram mantidos. Hoje, fazem parte do tour de um museu. Já as pedras do muro onde Red enterra seu "tesouro" foram compradas uma a uma depois que o fazendeiro dono das terras as colocou à venda no eBay.
O irônico em relação a sua popularidade é que Um Sonho de Liberdade não foi um sucesso de público quando estreou nos cinemas dos EUA. Produzido com orçamento de US$ 25 milhões, arrecadou somente US$ 28,7 milhões nas bilheterias. Por outro lado, em 1995 virou o recordista em locação de fitas VHS. As indicações ao Oscar, a propaganda boca a boca e as exibições na TV (em uma época na qual não havia a disponibilidade do streaming) contribuíram para construir a fama tardia.
No Brasil, onde desembarcou já com a publicidade da disputa pelos prêmios da Academia de Hollywood, contou com um acerto da equipe de marketing: em vez de traduzir fielmente o nome do filme, bolou um título muito mais evocativo do que seria A Redenção em Shawshank. É seguro dizer que essa escolha ajudou a atrair a audiência, a ponto de Um Sonho de Liberdade ter permanecido mais de cem dias em cartaz nas salas de Porto Alegre.
Um dos entusiastas de primeira hora foi o cronista Paulo Sant'Ana (1939-2017). Em coluna publicada na Zero Hora do dia 27 de maio de 1995, quando o título já estava havia 11 semanas em exibição, o notório megalômano escreveu: "Reivindico uma parte ou o todo desse sucesso a esta coluna, que num dia foi inteiramente ocupada por um elogio às humanidades desse filme, aconselhando seus leitores a não perderem essa película de poético, doce e ao mesmo tempo dolorido conteúdo". (O arremate foi ainda mais egocêntrico: "Não esqueçam, quando esta coluna aconselhar filme, livro, restaurante, mulher, opção política, não vacilem e mergulhem cegamente no paraíso indicado".)
A tal coluna em que Sant'Ana derramou elogios a Um Sonho de Liberdade saiu na Zero Hora de 31 de março—_ portanto, 14 dias após sua estreia —, intitulada "Um filme inesquecível". O texto traz outros motivos que ajudam a explicar a adoração do público pelo filme. Reproduzo trechos aqui: "É daqueles filmes em que você tem a sensação de ter voltado de uma grande viagem, mais humano, mais afirmado, mais compreensivo com o destino, menos perplexo diante das peças que a vida nos prega. (...) Diversas cenas me sacudiram na poltrona, raras me fizeram rir com vontade, muitas me provocaram lágrimas de emoção ou de autopiedade, comovido com a miséria da nossa condição humana. A gente sai do cinema flutuando, acreditando na força da amizade, nos valores afetivos que aproximam os homens atingidos pela desgraça. (...) Há uma cena que explica a espantosa felicidade dos pobres diante das migalhas que lhe são oferecidas pelo cotidiano. E a insistência do homem em viver, mesmo quando tudo se torna inviável na sequência terrível das barreiras que aparecem todos os dias e vão se amontoando numa tragédia existencial sem solução".
Cinco curiosidades de "Um Sonho de Liberdade"
1) Stephen King nunca descontou o cheque de US$ 5 mil que recebeu pela venda dos direitos de adaptação. O escritor conhecera Frank Darabont quando o roteirista e diretor, que mais tarde também faria À Espera de um Milagre (1999) e O Nevoeiro (2007), o procurou para transformar o conto The Woman in the Room em um curta-metragem, em 1983. King, que tem a política de permitir que aspirantes a cineastas adaptem seus contos por apenas US$ 1, ficou bastante impressionado com o trabalho de Darabont, e os dois começaram uma amizade por cartas. Eles se conheceram pessoalmente quando o diretor decidiu levar para o cinema a história Rita Hayworth and Shawshank Redemption. King recebeu um cheque de US$ 5 mil, que acabou emoldurado e enviado a Darabont com um bilhete: "Caso você precise de dinheiro de fiança. Amor, Steve".
2) Rob Reiner ofereceu US$ 2,5 milhões pelo roteiro de Frank Darabont. Diretor de duas adaptações de Stephen King — Conta Comigo (1986) e Louca Obsessão (1990) —, Reiner gostou tanto do roteiro escrito por Darabont que ofereceu uma bolada de dinheiro para dirigir o filme. O roteirista chegou a considerar a proposta, mas concluiu que era a sua "chance de fazer algo realmente bom".
3) Clint Eastwood, Harrison Ford, Paul Newman e Robert Redford foram cotados para o papel de Morgan Freeman. No original de King, o personagem de Freeman é um irlandês ruivo de meia-idade. Darabont, porém, diz que sempre teve o ator negro em mente por conta da sua presença dominante e a sua voz profunda. No filme, eles mantiveram a explicação de Red para o seu apelido — "Talvez seja porque sou irlandês"— como uma piada.
4) Tom Hanks, Kevin Costner, Tom Cruise, Nicolas Cage, Johnny Depp e Charlie Sheen estiveram no páreo para interpretar Andy Dufresne. Hanks, que trabalharia com Darabont em À Espera de Um Milagre, recusou o filme pois estava envolvido em Forrest Gump, e Costner não aceitou o papel pois estava filmando Waterworld: O Segredo das Águas (1995) — depois, o ator confessou se arrepender da decisão. Brad Pitt foi considerado para o papel de Tommy Williams (que ficou com Gil Bellows), mas preferiu estrelar Entrevista Com o Vampiro (1994).
5) O título original da novela de Stephen King atraiu gente interessada em encarnar Rita Hayworth, que não é uma personagem no filme. Nos testes, houve até um rapaz em momento drag queen. Um dos maiores símbolos sexuais de Hollywood, a atriz (1918-1987) só aparece na forma de um pôster, pedido por Andy a Red, e em cenas de Gilda (1946), clássico do cinema noir a que os presidiários assistem em Shawshank.
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