Vou começar dando spoiler de Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80, livro do jornalista e escritor Ricardo Alexandre lançado originalmente em 2002 que, após muito tempo fora de catálogo, ganhou uma nova edição, atualizada e corrigida, pela Arquipélago Editorial (440 páginas, R$ 119,90).
No final do volume lançado pela editora gaúcha, há uma lista intitulada "As 50 Melhores Músicas dos Anos 80". Segundo o texto, foram selecionadas pelo criador do podcast Discoteca Básica — de onde nasceu o livro Os 500 Maiores Álbuns Brasileiros de Todos os Tempos (2002) — por causa de sua importância histórica, méritos artísticos, repercussão popular e de crítica.
Todas as listas geram sentimentos mistos, reações contraditórias. Por um lado, sua publicação parece oficializar o subjetivo, um endosso perene a nossos gostos particulares. Por outro, nos flagramos apontando as presenças polêmicas ou as ausências imperdoáveis.
Paulista nascido em 1974, ganhador do prêmio Jabuti de melhor biografia por A Vida e o Veneno de Wilson Simonal (2009) e diretor do documentário Júlio Barroso: Marginal Conservador (2013), Ricardo Alexandre é preciso e ao mesmo tempo singular ao justificar algumas escolhas. Sobre Perdidos na Selva (1981), da Gang 90 & Absurdettes, escreveu: "Júlio Barroso fez com a new wave o que Caetano havia feito com o movimento hippie: comeu, devolveu ao mundo e formatou um movimento planetário como se fosse tão brasileiro quanto Carmen Miranda". Logo abaixo, Tempos Modernos (1982), de Lulu Santos, mereceu as seguintes palavras: "Os oitentistas não gostavam de 'manifestos', mas o que temos aqui é quase isso. Lulu clama por 'um novo começo de era' com novos parâmetros éticos, políticos, sexuais, morais e sociais".
Estão lá sucessos estrondosos do tipo Você Não Soube me Amar (1982), da Blitz, e Menina Veneno (1983), do Ritchie. Acho que nosso bairrismo fica bem atendido — 10% das canções são de bandas gaúchas: Surfista Calhorda (Os Replicantes), Camila, Camila (Nenhum de Nós), Infinita Highway (Engenheiros do Hawaii), Repelente (De Falla) e O Dotadão (Cascavelletes). E é reconfortante deparar com a validação de pérolas como Sou Boy (1982), do Magazine, e Humanos (1985), do Tokyo, ou Proteção (1986), da Plebe Rude, e Carne e Osso (1987), dos Picassos Falsos.
Mas causam estranheza, para não dizer revolta, idiossincrasias — ainda que assumidas — como a inclusão da obscura Adriana na Piscina (1983), dos Rapazes de Vida Fácil, em detrimento de clássicos da Legião Urbana, representada somente por Índios (1986) e Pais e Filhos (1989). Ficaram de fora pelo menos dois hinos geracionais — Será? (1985) e Tempo Perdido (1986) —, além de Faroeste Caboclo (1987), que, mesmo com nove minutos de duração, virou fenômeno radiofônico. E, a julgar pelos critérios do livro, também poderiam ter entrado Geração Coca-Cola (1985), Ainda É Cedo (1985), Eduardo e Mônica (1986), Que País É Este? (1987), O Teatro dos Vampiros (1991)...
Verdade seja dita, nesse top 50 só aparecem três vezes Cazuza (1958-1990), primeiro com Bete Balanço (1984), dos tempos de Barão Vermelho, depois com Ideologia (1988) e O Tempo Não Para (1988), na carreira solo, e Leoni, com duas canções do Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Pintura Íntima (1983) e Como Eu Quero (1984), e a balada Só pro meu Prazer (1986), dos Heróis da Resistência. Há duas citações a Lulu Santos (a segunda é Como uma Onda), duas do Ultraje a Rigor (Inútil e Nós Vamos Invadir sua Praia), duas dos Paralamas do Sucesso (Alagados e Perplexo), duas dos Titãs (Comida e Miséria), duas do Camisa de Vênus (O Adventista e Muita Estrela, Pouca Constelação, esta com Raul Seixas).
A pluralidade de vozes e de vertentes — ou de corações e mentes, para citar um petardo dos Titãs — é uma das virtudes de Dias de Luta. Ricardo Alexandre reconstitui o nascimento tanto da cena punk de São Paulo quanto da cena new wave do Rio; recria o surgimento da turma da Colina, em Brasília, e do Camisa de Vênus, em Salvador; e registra o aparecimento, no circuito heavy metal de Belo Horizonte, da banda brasileira de maior projeção internacional, o Sepultura. Porto Alegre também está no mapa, com destaque para o quinteto reconhecido na lista: Os Replicantes, Cascavelletes, De Falla e, principalmente, Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós.
O autor não tomou o caminho mais fácil, que seria o de contar a história de cada artista e cada banda separadamente. Encarou o desafio de narrar cronologicamente a história de todo o movimento, da ascensão à queda, incluindo o pacto com o Diabo firmado pelos roqueiros com os produtores do programa de TV do Chacrinha. O resultado dos seis anos de pesquisa e reportagem é um relato quase romanceado, com conflitos dramáticos que deixam ganchos para os capítulos seguintes, com reconstituições dos bastidores de gravações sublimes ou turbulentas e com desenvolvimento de personagens que vão e vêm. Alguns têm mais protagonismo, casos de, por exemplo, Lulu Santos, Lobão, Cazuza, Leo Jaime, Herbert Vianna (dos Paralamas), Paulo Ricardo (do RPM), o jornalista Nelson Motta e o produtor Liminha. Outros são coadjuvantes de luxo, como Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Caetano e Gil em um livro sobre o rock da década de 1980? Aí está outro grande trunfo de Ricardo Alexandre: a contextualização. Como o subtítulo indica, Dias de Luta faz um retrato transversal, enxergando o Brasil não apenas por uma perspectiva cultural, mas mostrando a forte influência de aspectos políticos, econômicos e sociais na criatividade musical e na indústria fonográfica.
O cenário brasileiro era propício para duas ferramentas básicas dos roqueiros: tanto a ruptura, diante do afrouxamento da ditadura militar, quanto a frustração, diante do adiamento da volta das eleições diretas para a Presidência. Considerado um sinônimo de contestação, o rock emergiu no país também graças a uma juventude que não ouvia seu cotidiano e suas demandas nos versos da MPB. Artistas novos buscavam espaço em um mercado dominado por nomes que, evidentemente, não queriam perder seu reinado — às vezes, faziam fechar portas, em outras, surfavam na mesma onda para permanecer na crista. Gil fez em 1983 Punk da Periferia, com estereótipos que deixaram fulo da vida Clemente, um dos fundadores dos Inocentes. Caetano lançou em 1984 Podres Poderes, cuja letra arrogante é detonada por Lobão na página 202.
"Antes da nossa geração", diz Leoni, do Kid Abelha, na página 140 de Dias de Luta, "o Brasil era um país partido culturalmente. De um lado, a MPB de Caetano Veloso e Chico Buarque para um pessoalzinho pequenininho e, nas AMs, um outro tipo de música, Odair José, Amado Batista, que a elite não consumia. O pop trouxe esse crossover, essa comunicação. Juntamos tudo: a garotada estava o programa do Bolinha até a revista Veja. Todos em um único país".
O mesmo Leoni acrescenta, para atestar o poder do pop: "O cara está voltando da escola, se sentindo um merda, solitário, aí ouve uma música e diz 'pô, este sou eu, não estou sozinho no mundo. De repente, nós estávamos dizendo o que todo mundo queria dizer".
Uns falaram sobre questões sociopolíticas, vide Inútil (1983), do Ultraje a Rigor, que começa com Roger Moreira declarando que "A gente não sabemos / Escolher presidente (...) Tem gringo pensando / Que nóis é indigente". Outras falaram, pioneiramente, de igualdade de gênero, vide Eu Sou Free (1984), do Sempre Livre, em que Dulce Quental prega que tem "horror a compromisso" e alerta: "Mas você não tem muita chance / Não me venha com romance / Porque eu sou free / Free lancer / Free lancer". E houve quem falasse sobre grupos invisibilizados, marginalizados, vide Sou Boy, do Magazine, em que Kid Vinil (1955-2017) enumerou as agruras dos office-boys: "Acordo sete horas, tomo ônibus lotado / Entro oito e meia, eu chego sempre atrasado".
O bom humor era uma marca, mas também havia raiva — não rara expressa nos próprios nomes das bandas: Cólera, Ira!, Plebe Rude. Também havia protesto — os Titãs compuseram Polícia na esteira da prisão de Arnaldo Antunes por posse de drogas, criticaram a desvalorização da arte, do prazer e da liberdade em Comida e condenaram a banalização da desigualdade social em Miséria. Também havia a angústia juvenil diante do amor, da solidão, da depressão, da passagem do tempo, da crise existencial, da busca por paz de espírito — nessa seara, Renato Russo (1960-1996) foi o grande poeta (e também um mestre do planejamento e do marketing, como comprova o relatório sobre o disco Dois reproduzido em Dias de Luta), uma figura messiânica que transformou os shows da Legião Urbana em templos ecumênicos. E também havia a dor pelo enfrentamento precoce da finitude — depois que descobriu ter aids, Cazuza imprimiu mais impacto dramático a suas letras, como recupera Ricardo Alexandre: "Meu prazer agora é risco de vida / Meu sex and drugs não tem nenhum rock'n'roll" (Ideologia), "Senhoras e senhores / Eu trago boas novas / Eu vi a cara da morte e ela estava viva" (Boas Novas).
Cazuza foi personagem de um dos capítulos mais lamentáveis da história do rock brasileiro — na verdade, da história da cobertura jornalística do rock brasileiro. Assim descreve Ricardo Alexandre, na página 380: "A última imagem que a opinião pública tem do artista foi a chocante e polêmica reportagem da revista Veja, de 26 de abril de 1989. O semanário publicou uma capa crua, em que expunha Cazuza, cadavérico, com os músculos do pescoço duramente realçados pela magreza, com poucos e desgrenhados cabelos, sob a manchete 'Uma vítima da aids agoniza em praça pública'". Dias de Luta cita o desabafo de Lucinha Araújo no livro Cazuza: Só as Mães São Felizes (1997), em depoimento a Regina Echeverria: "Veja sentenciou a morte do meu filho sem qualquer constrangimento: como deuses, jornalistas decidiram seu destino".
Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, leu à beira da piscina de sua casa em Petrópolis, na serra do Rio de Janeiro, a matéria assinada por Ângela Abreu — que na semana seguinte pediu demissão, responsabilizando a edição da revista por enfatizar, no texto, o uso de drogas e a vida sexual do artista. A pressão sanguínea do cantor e compositor baixou tanto, que, na madrugada, precisou ser levado ao Rio para ser hospitalizado. Mais cedo, chorou compulsivamente quando chegou ao último parágrafo: "Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no tempo presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose, em 1937, Noel Rosa tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada menos que 213 músicas, dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade". Cazuza deixou 126 canções gravadas, 78 inéditas e 34 para outros intérpretes. Seus versos ficaram perpetuados tanto no âmbito romântico ("O nosso amor a gente inventa / Pra se distrair / E quando acaba a gente pensa / Que ele nunca existiu") quanto na praia sociopolítica ("Brasil / Mostra a tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim / Brasil / Qual é o teu negócio / O nome do teu sócio / Confia em mim").
Embora seja jornalista e tenha sido diretor de redação da revista Bizz, Ricardo Alexandre não poupa críticas à imprensa. Aliás, ataca a própria Bizz, com seu pendor para assumir o papel de vilão, como assume o jornalista Alex Antunes, em nome de uma suposta credibilidade — comprometida pelo duplo papel de seus editores e redatores, que também eram integrantes de bandas à la 3 Hombres, Fellini e Akira S & As Garotas que Erraram. "A Bizz matava o mercado do qual ela própria se ocupava", diz Leoni. "A imprensa fez de tudo para destruir todas as carreiras", afirma Leo Jaime. "Um pessoal designado para nos cobrar fidelidade aos modelos ingleses e se precaver para que todo mundo que fizesse sucesso fosse ridicularizado no dia seguinte. A crítica nos exigia o fracasso."
Uma das vítimas da Bizz e de seus similares foi o Nenhum de Nós, jamais perdoado pela ousadia de verter Starman (1972), de David Bowie, para O Astronauta de Mármore (1989). Escreve Ricardo Alexandre: "Um grupo com pretensões conceituais acabou entrando para a história como uma bobagenzinha pop sem maiores consequências". Na página 374, o vocalista e baixista Thedy Corrêa compara: "A maior parte dos jornalistas que nos surraram e massacraram acabaram sumindo, foram tocar suas vidas em outras áreas. Como crianças que derrubam o vaso e fogem. Está lá o vaso quebrado, as flores estão morrendo, a água se espalhou e os caras foram embora, ninguém quis assumir nada".
Mas a história do rock brasileiro dos anos 1980 também é marcada por artistas que, como Ícaro, simplesmente voaram perto demais do Sol. E eles assumem seus erros.
É o caso do RPM, quarteto paulistano surgido em 1984 que vendeu praticamente 1 milhão de cópias com seu primeiro disco, Revoluções por Minuto (1984), graças a sucessos como Rádio Pirata, Olhar 43 e Louras Geladas. No livro de Ricardo Alexandre, o vocalista e baixista Paulo Ricardo e o baterista Paulo Pagni, o PA, relembram os shows para multidões, as desavenças internas, as montanhas de cocaína e as noitadas de sexo. Talvez seja a banda que melhor sintetize a narrativa de ascensão e queda que é típica do rock, a jornada aflitiva de artistas jovens para chegarem e, mais difícil ainda, continuarem no topo.
Vale repetir a declaração de Paulo Ricardo, que torrou sua fortuna em álcool, drogas e projetos infrutíferos, na página 408: "Tudo é lucro, estar vivo é lucro. Eu poderia ter morrido, bem rock'n'roll star. Quando você atinge teu objetivo, nasce uma ansiedade por algo que você não sabe o que é. Mas é essa a frustração que leva um Kurt Cobain a dar um tiro na cabeça. É a certeza, clara, de que você nunca mais vai conseguir superar aquilo que acabou de fazer. De que agora eu vou passar o resto da minha vida à minha própria sombra — no máximo, tentando a manutenção daquilo. Porque nunca mais eu vou ter 23 anos, nunca mais vou ser virgem. Nunca mais. Nunca mais se repete aquele segundo glorioso em que uma pessoa vem do nada para o tudo".
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