Foram quase duas horas de peso histórico. De sucessivas pancadas e riffs pujantes. Em uma apresentação devastadora, o Sepultura levou o show de sua turnê de despedida, Celebrating Life Through Death, ao palco do Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, na noite desta quinta-feira (21).
Diante de um auditório com ingressos esgotados, a banda reproduziu 40 anos de carreira no repertório. Derrick Green (vocal), Andreas Kisser (guitarra), Paulo Xisto (baixo) e Greyson Nekrutman (bateria) trouxeram faixas de todas as décadas do grupo: desde o impetuoso thrash metal de Morbid Visions (1986), passando pela trinca de ouro noventista — Arise (1991), Chaos A.D. (1993) e o aclamado Roots (1996) —, chegando à fase em que Green assume a voz da banda, renovando o Sepultura em Against (1998).
O setlist contemplou também os anos 2000 e 2010, especialmente o último trabalho de estúdio do grupo, Quadra (2020). O Sepultura tocou três músicas do disco: Agony of Defeat, Guardians of Earth e Means to an End.
Como se trata de uma turnê de despedida, o show desta quinta pode ter sido a última "patada" do Sepultura na capital gaúcha, a não ser que a banda mude seus planos. Em dezembro do ano passado, o grupo anunciou que daria adeus aos palcos em uma turnê global, que culminará em um álbum ao vivo. O Sepultura informou em comunicado que o fim das atividades é "uma morte consciente e planejada".
Roda punk, gritos e headbanging
O show da turnê de despedida em Porto Alegre começou com uma pedrada: Refuse/Resist. Embora o auditório seja composto praticamente por cadeiras, ninguém ficou parado no lugar. Tanto que uma parte do público se concentrou na grade em frente ao palco, seja para pular com liberdade ou entrar em mosh (roda punk). Algumas faixas tocadas ao longo da apresentação — como False, Escape to the Void e Biotech Is Godzilla — serviriam como combustível ao movimento extravasante daquele local.
Logo na primeira música, veio a amostra do potencial vocal de Green, que sobra em vigor. Xisto segurava a cozinha sonora, enquanto Kisser arrebatava em riffs e solos com autoridade. Já o novato Greyson provou que está à altura da responsabilidade, descendo o braço na bateria com competência e trazendo um frescor ao quarteto.
Com apenas 21 anos, o baterista americano precisou aprender as músicas do Sepultura em pouco tempo. Os fãs aprovaram: Greyson teve seu nome ovacionado pelo público em mais de uma ocasião.
— É o seu Greyson, agora com "équio" — brincou Kisser, referindo-se ao personagem Seu Creysson, interpretado por Cláudio Manoel no programa Casseta e Planeta, Urgente!.
Extasiados ao término da primeira música, os fãs proferiram um grito que se repetiria constantemente ao longo da noite: "Sepultura, Sepultura, Sepultura".
Com Territory, que foi tocada na sequência, o auditório virou um mar de headbanging (cabeças balançando). Slave New World completaria a trinca vinda Chaos A.D., que abriu o show.
A apresentação seguiu consistente, em um espetáculo de precisão e energia promovido pelo quarteto, com arroubos explosivos em clássicos como Attitude, Escape to the Void, Sepulnation, Biotech Is Godzilla e Troops of Doom.
Para fechar o show antes do bis, a banda tocou a incendiária Arise. Mais uma pancada.
Começo e fim
O Sepultura foi criado pelos irmãos Max e Iggor Cavalera, em Belo Horizonte, em 1984. Entre entradas e saídas de integrantes, o único remanescente da primeira formação é Xisto. A última baixa na banda, aliás, rolou às vésperas da turnê de despedida: o baterista Eloy Casagrande deixou o grupo, e Greyson Nekrutman foi recrutado para a vaga.
Ao longo de quatro décadas, o Sepultura se consolidou como a banda de metal brasileira mais reconhecida internacionalmente. Sua sonoridade se tornou referência especialmente pela mescla entre um rock mais pesado com elementos tribais do Brasil.
Quando lançou Roots, que contou com colaboração de Carlinhos Brown na percussão, o Sepultura se consagrou no que se tornaria um dos discos mais influentes na história do metal. Contudo, foi também o último trabalho com a participação do vocalista Max Cavalera — o irmão, Iggor, sairia em 2006.
Sobre uma possível reunião com os irmãos Cavalera, Andreas Kisser costuma ser evasivo em entrevistas, que "tem uma porta aberta de trabalho" ou que seria legal chamar todo mundo em um último show.
Seja qual for o caminho, o Sepultura talvez tenha fechado um ciclo em Porto Alegre na noite desta quinta. A banda empilhou shows históricos na capital gaúcha, além de abrir para nomes como Metallica, no Jockey Club, em 1999, e Ramones, no Gigantinho, em 1994.
Só que a primeira incursão do Sepultura em Porto Alegre foi em um local impensável hoje em dia: no ginásio do Colégio Estadual Protásio Alves, na Avenida Ipiranga. A apresentação foi realizada no dia 25 de março de 1988, como parte da turnê do disco Schizophrenia (1987).
Um pouco dessa história é contada no livro Tá No Sangue! — A História do Rock Pesado Gaúcho: Anos 70 e 80, escrito por Douglas Torraca, Luis Augusto Aguiar e Maicon Leite. A publicação relata que tamanha era a barulheira da banda, que um delegado foi ao local. O agente policial solicitou subir ao palco, ameaçou prender geral, mas foi contido pelos organizadores.
A barulheira estava novamente brutal nesta quinta, como há 36 anos. Na volta para o bis, o Sepultura encerrou a apresentação com uma dobradinha do Roots. Primeiro com Ratamahatta e seus brilhantes versos de "Zé do Caixão, Zumbi, Lampião". Por fim, Roots Bloody Roots colocou o Araújo todo para pular e gritar o título/refrão da canção. Foi uma hecatombe sonora. Será que viria o delegado?