Triste a vida de quem não tem ídolos. A inspiração que eles trazem. A forma de ver a vida através de seu filtro e de seu norte. Artistas costumam ter ídolos. Muitos decidem o caminho da arte justamente quando se deparam com um ídolo. Alguém que de imediato causa um impacto na existência do mero mortal. Ídolos, estes sim, imortais. O fantástico é quando, mesmo sem saber, esse ídolo interfere diretamente na vida daquele que o idolatra. Passa a fazer parte de suas entranhas e assim determinar seus caminhos.
No final do anos 80, o Brasil tinha o rock dominando as paradas de sucesso – algo inimaginável hoje – e o Nenhum de Nós havia lançado seu primeiro disco com a canção Camila Camila. Aposta da gravadora, a música demorou muito a alcançar o sucesso pretendido, tanto que entramos em estúdio para a gravação do segundo disco sob a ameaça de que o primeiro não havia estourado e portanto era nossa última chance.
Entre as seções traumáticas e tensas, em um intervalo das gravações, sozinhos no estúdio, para desestressar, começamos a tocar os covers que faziam parte do nosso show.
Uma banda ainda verde, com um único disco repleto de canções consideradas "difíceis" precisava preencher o set list para ter um show de boa duração. Nossas escolhas recaíram – ingenuamente, pode se dizer – sobre nossos maiores ídolos, mesmo que eles não fossem garantia de algum impacto na platéia. Psycho Killer, do Talking Heads e uma de David Bowie. Ele era obrigatório para nós! Nos ensaios, testamos várias canções para ver qual se adaptaria melhor à sonoridade do trio. China Girl, Ashes to Ashes, Lady Stardust, Life on Mars, Rebel Rebel... Optamos pela dramaticidade da melodia de Starman. Justamente ela que estávamos tocando quando nosso produtor, Reinaldo Barriga, entrou no estúdio e, dizendo adorar a canção, propôs o desafio de fazermos uma versão. Uma homenagem, já que éramos tão fãs do cara.
Foi um trabalho árduo de artesania da letra: o resgate do icônico viajante espacial Major Tom, as citações à rotina dos astronautas, alusões às drogas, à religião, recortes de outras canções de Bowie ("Quero um machado para quebrar o gelo" vem diretamente de Ashes to Ashes). No arranjos mais citações: a base de violão característica do clima folk de The Man Who Sold the World e Hunky Dory. O violino que remetia a Hurricane, de Dylan – influência confessa de Bowie – e até mesmo a participação de Giuseppi Fripi, da banda paulista Voluntários da Pátria, personificando outro colaborador, de outra fase, do nosso homenageado.
Depois disso veio a longa espera pela liberação que viria da Inglaterra. O próprio Bowie quis saber do que tratava a letra e uma tradução em inglês foi enviada. A burocracia atrasava a finalização do nosso disco, mas agora não havia volta. Bowie estaria em nosso novo disco! E então ele pessoalmente autorizou a versão – informação que confirmei em conversa com a encarregada da liberação, em Londres, naquele mesmo ano.
Uma letra pra lá de hermética. Um arranjo recheado de referências, a segunda música do lado B, tudo isso traduzia a pouca fé que tínhamos no sucesso da empreitada. Ledo engano. Foi a música mais tocada em todo o país em 1989!
Fomos alvo de amor e de muito ódio. O amor dos que a levaram ao sucesso e o ódio dos críticos e "colegas" que nos acusavam de ter assassinado a canção de Bowie. Ele mesmo não pensou assim, tanto que quando veio ao país – pela primeira vez – no show que realizou em São Paulo, fez referência à nossa versão, convidando as pessoas a cantarem em português se assim quisessem. Alguém poderia – e tinha o direito – gostar ou não do resultado, mas jamais duvidar da honestidade da homenagem!
David Bowie passou a fazer parte, definitivamente, de nossas vidas. No meu caso, em especial, sua influência foi determinante para que eu me descobrisse vocalista e o caminho a seguir na maneira de interpretar. Suas várias fases me conduziram em diferentes momentos da minha carreira. Quando as coisas ficavam incertas, era para ele que minhas atenções se voltavam. Ele era meu norte. Meu farol. A camiseta a se procurar nas lojas de rock! Uma inspiração na maneira de vestir, na performance no palco, no corte de cabelo e no gosto pela arte. Uma importância do tamanho e da intensidade da dor que tomou conta de meu peito ao saber que ele partiu. Dor e vazio de ter que viver em mundo sem Bowie. Com certeza um mundo pior.
Ele foi o transgressor que empurrou a sociedade a debater questões fundamentais. Ele foi o artista que causava desconforto com uma figura que desafiava a compreensão. Foi andrógino, galã, moderno, vintage, homem, homo, bissexual e algo mais.
Por tudo isso, não seria exagero considerar que o Bowie da fase Ziggy Stardust seja a mais perfeita encarnação de um roqueiro para os dias de hoje. A discussão em torno das questões relacionadas à sexualidade, à homossexualidade, ao transexualidade, ao "sair do armário" – seja por parte de celebridades bem como do anônimo escondido no meio da multidão – tomou um novo rumo depois dele. Mais aberta e aceita, essa discussão encontra um ícone perfeito no andrógino e provocador Ziggy. Não se trata de um resumo de sua carreira, mas de um recorte em uma artista gigantesco cuja a importância justifica as lágrimas que o planeta inteiro derrama hoje por ele.