A Netflix adicionou recentemente a seu menu um filmaço sobre a Primeira Guerra Mundial: 1917 (2019), que recebeu os Globos de Ouro de melhor drama e melhor diretor (Sam Mendes) e conquistou o Oscar nas categorias de fotografia, mixagem de som e efeitos visuais — concorria a outras sete estatuetas, incluindo a mais cobiçada, a de direção e a de roteiro original, que acabaram ficando nas mãos do fenômeno sul-coreano Parasita.
1917 realça virtudes que o cineasta inglês, realizador do oscarizado Beleza Americana (1999), de Estrada para Perdição (2002) e de dois títulos da franquia 007 — Operação Skyfall (2012) e Spectre (2015) —, demonstrou ao longo da carreira, como a elegância narrativa, a direção de elenco e o capricho com a parte técnica. O filme é baseado nas memórias de seu avô paterno, Alfred Mendes, que lutou na Primeira Guerra Mundial, mas quase tudo é ficção.
A trama coescrita por Mendes com a escocesa Kristy Wilson-Cairns é relativamente simples. Passa-se ao longo de um dia, no começo de abril de 1917, no front francês de combate. Ali, dois jovens soldados ingleses, os cabos Blake (Dean-Charles Chapman, o Tommen Baratheon das temporadas 4 a 6 de Game of Thrones) e Schofield (George MacKay, que depois faria Munique: No Limite da Guerra), recebem a missão de atravessar a chamada Terra de Ninguém, cruzando territórios sob o domínio ou recém abandonados pelos alemães, para entregar uma mensagem que pode salvar 1,6 mil vidas do exército britânico. A complexidade está na forma como essa história é contada.
A decisão de filmar como se fosse um longo e único plano sequência, ou seja, sem cortes (tipo Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro, Birdman, de Alejandro Gonzalez-Iñárritu, e o recente Soft & Quiet, de Beth de Araújo), traduz a incumbência de Blake e Schofield: eles não podem parar, precisam estar sempre em movimento, o tempo corre contra eles. Portanto, nem a produção pode se dar ao luxo de rodar uma cena de um ângulo e depois de outro para combiná-las na montagem.
A partir do momento em que os dois se veem obrigados a abandonar o descanso em uma paisagem campestre, a câmera os mostrará caminhando por entre trincheiras como aquelas do filme alemão Nada de Novo no Front (2022) — primeiro, vindo em direção a nós, depois, nos tornamos uma espécie de sombra às costas dos personagens, seguindo seus passos. Enquanto isso, as imagens vão descortinando o imenso cenário e a quantidade de coadjuvantes e figurantes, além de cartazes contrastantes que nos relembram sobre como os soldados tentam reproduzir a ideia de um lar mesmo sob a iminência da morte — na "Viela Paraíso", recomenda-se: "Fique de cabeça baixa durante o dia".
O impacto provocado pelo virtuosismo técnico se repetirá mais vezes, justificando o Oscar de melhor fotografia (o veterano Roger Deakins, também premiado por Blade Runner 2049, faz poesia noturna em uma cidade destruída, opondo fogo e escuridão) e a indicação na categoria de design de produção — fundamental não só pela recriação dos campos de batalha, mas pelo posicionamento milimétrico dos cenários. Afinal, os personagens movem-se de um a outro constantemente, e todos precisaram ser construídos tendo em mente o tempo de deslocamento dos atores e o percurso da câmera (Mendes ensaiou tudo à exaustão).
Em um filme que se vê muito, o que se ouve também é importante. Além dos trabalhos técnicos de captação de som e sincronização desses elementos de áudio com as imagens, vale destacar a excelente trilha sonora composta por Thomas Newman. Ele sabe a hora de, quase subliminarmente, induzir a tensão do espectador e a hora de aumentar as apostas, subindo a música.
Também merecem nota a maquiagem, que disputou o Oscar, e os figurinos, dado o detalhismo de Jacqueline Durran — chega a ser comovente reparar que o uniforme de Schofield, depois que ele nada em um rio, vai secando aos poucos, a ponto de em uma cena percebermos que apenas a barra do casaco "continua" molhada. Uma injustiça da Academia de Hollywood foi não indicar o editor Lee Smith, habitual colaborador do diretor Christopher Nolan (venceu o Oscar por Dunkirk). Sim, porque 1917 somente simula ser um filme sem cortes. Na verdade, há dúzias deles, ligando cenas longas, de seis a oito minutos, e curtas, com pouco mais de um minuto. Alguns o público pode intuir, como quando há um blecaute, mas outros tantos estão escondidos.
O esmero técnico não comprometeu a parte humana. Dadas as circunstâncias, Blake e Schofield são personagens bem desenvolvidos, que espelham o que é, para um homem comum, ser tragado pelo horror e pela estupidez da guerra. Alternam medo e coragem, lançam mão do humor para suportar a abundância da morte (corpos se acumulam por todos os lugares), buscam meios para se manterem em pé e em marcha — há uma sequência linda em um acampamento, onde um soldado, à capela, entoa uma canção sobre estar voltando para casa, para ver seu pai e sua mãe.
Ao longo da perigosa e bastante imprevisível jornada, surgirão personagens coadjuvantes interpretados por carismáticos atores britânicos ou irlandeses, como Colin Firth, Andrew Scott (o padre bonitão da série Fleabag), Mark Strong, Benedict Cumberbatch e Richard Madden (o Robb Stark de GoT). A interlocução com eles permite a 1917 abordar temas tão conflitantes como espírito solidário e desumanização — voluntária ou compulsória — dos militares. Ouviremos verdades cruéis também. Um oficial alerta para que haja testemunhas na entrega da ordem de interrupção dos planos de combate:
— Alguns homens só querem lutar.
Outro ironiza o heroísmo póstumo:
— Nada como uma medalha com uma fita para animar uma viúva.