O que aconteceria se King Kong tivesse consciência e fosse dado a longos e melancólicos monólogos ("Essa indústria é uma fera, que não entende nada de amor e que sempre mata o que é belo")? O que aconteceria se os casais das comédias românticas, como Katharine Hepburn e Cary Grant, envelhecessem a ponto de serem literalmente consumidos pelo tempo? O que aconteceria se o personagem de James Stewart no clássico A Felicidade Não se Compra (1946) deparasse não com um anjo da guarda, mas com seu dublê?
Essas e outras situações são exploradas em Cinema Purgatório, coletânea que reúne as 18 histórias em quadrinhos produzidas pelo escritor Alan Moore e pelo artista Kevin O'Neill, editada no Brasil pela Panini (tradução de Paulo Cecconi nos capítulos 1 a 3 e de Érico Assis em todos os demais, 160 páginas, R$ 74,90 no preço de capa).
É como se a HQ apresentasse um multiverso, conceito que ganhou força nos cinemas nos últimos anos, graças a Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022), o grande vencedor do Oscar, e às aventuras da Marvel, incluindo a série de animação What If...? (2021) e o filme Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022). Nos quadrinhos, especialmente os de super-herói, há uma longa tradição de narrativas que imaginam novos rumos para personagens conhecidos, e os autores de Cinema Purgatório têm experiência no assunto.
Em 1999, Moore, hoje com 69 anos, e O'Neill, morto em 2022, aos 69, criaram a Liga Extraordinária, um supergrupo formado inicialmente por personagens da literatura vitoriana, na virada do século 19 para o 20: Allan Quatermain, Mina Murray (de Drácula), o Homem Invisível e Dr. Jekyll/Mr. Hyde, além do Capitão Nemo de Vinte Mil Léguas Submarinas. Mais adiante, juntou-se às fileiras Orlando (criação de Virginia Woolf), o jovem inglês que acorda mulher e torna-se imortal.
Em Cinema Purgatório, a dupla britânica debruça-se sobre ícones, épocas e gêneros do universo cinematográfico. Produzidos entre 2016 e 2019, com oito páginas cada, os 18 contos acompanham, pelo ponto de vista de uma espectadora anônima, estranhas sessões de cinema. O ambiente é decadente, os funcionários têm um quê de sinistro e outro de patético, e os filmes exibidos são versões distorcidas de títulos clássicos ou nem tanto, paródias macabras de obras incrustadas no imaginário popular ou confinadas à memória dos cinéfilos.
Moore e O'Neill desconstroem os filmes policiais dos anos 1910, os desenhos animado do Gato Félix dos anos 1920, as comédias dos Irmãos Marx dos anos 1930, as cinesséries de super-herói dos anos 1940. Encenam um debate filosófico e metalinguístico em uma produção sobre a Roma Antiga, mostram para onde vão os mocinhos e bandidos mortos nos faroestes e, numa sátira a Crepúsculo dos Deuses (1950), reúnem cadáveres falantes em um necrotério, onde fofocam sobre sexo, pedofilia, homofobia, racismo e perseguição política em Hollywood.
Um dos destaques é a subversão de A Felicidade Não se Compra (It's a Wonderful Life), que, em um belo achado da tradução de Érico Assis, virou A Felicidade Não se Quebra.
Outro ponto alto é Minha Bela Dália, improvável mistura de policial noir com musical. Em um desafio que fez suar o tradutor, tudo é cantado e rimado enquanto o roteirista inglês discute e ironiza a relação violenta e exploratória dos homens de Hollywood com as atrizes e a predileção do cinema por histórias que envolvem sexo e crime (como se as personagens femininas — e, por extensão, suas intérpretes — fossem meras bonecas):
"Me chame de Betty, de Miss Short, de Elizabete
Muitos nomes me deram desde 47
Prostituta, desvirtuada, mascadora de chiclete
Digo a todas que nunca fui simplória
Com meu cabelo tão distante do meu pé
Nem Aggie Underwood conteve seu café
Perdão por tapar sua visão de fé
É que a moça aqui não está no melhor dia
Com um fim desses, não a presuma doentia
É só mais um anjo de L. A. que se extravia."