A fábrica de reciclagem de Hollywood não para de funcionar. Em cartaz a partir desta quinta-feira (27) nos cinemas, Renfield: Dando o Sangue pelo Chefe (2023) é uma mistura de terror, comédia e policial que faz uma releitura dos célebres personagens criados pelo escritor Bram Stoker em Drácula (1897). Agora, Nicolas Cage e Nicholas Hoult interpretam o Príncipe das Trevas e seu atormentado servo, que, entre outras encarnações, já foram vividos por Bela Lugosi e Dwight Frye (no clássico de 1931 dirigido por Tod Browning), Christopher Lee e Klaus Kinski (em uma coprodução europeia de 1970), Gary Oldman e Tom Waits (na versão de 1992 assinada por Francis Ford Coppola) e Claes Bang e Mark Gatiss (na minissérie britânica de 2020).
Dirigido por Chris McKay, realizador de Lego Batman: O Filme (2017) e A Guerra do Amanhã (2021), Renfield cozinha, com humor, essas e outras referências. A divertida sequência de abertura, por exemplo, é um prólogo em preto e branco que emula o Drácula de Browning, imaginando como seria uma espécie de continuação, na qual o conde da Transilvânia ressuscita Renfield. O Nosferatu (1922) do cineasta alemão F.W. Murnau também é visualmente citado em uma passagem, assim como a estética do lar do vampiro remete aos títulos lançados pela produtora inglesa Hammer entre 1958 e 1976.
A história se passa em New Orleans, onde a romancista Anne Rice ambientou sua saga literária iniciada por Entrevista com o Vampiro (1976). Um dos cenários, o restaurante cajun Mulates, tem a decoração inspirada nos famosos monstros do estúdio Universal, como o de Frankenstein, o Lobisomem e o Homem Invisível. Já a aparência bestial do Drácula de Nicolas Cage — que, vale lembrar, em O Beijo do Vampiro (1988) viveu um agente literário que acredita ter sido mordido por uma chupadora de sangue e passa a sentir os efeitos da transformação —, com dentes afiados como os de um tubarão e uma eventual cartola na cabeça, é uma homenagem a um tesouro perdido do horror: London After Midnight (1927), um filme mudo que teve sua última cópia destruída em um incêndio em 1965 e que traz Lon Chaney (o mago da maquiagem, o homem da mil faces) no papel de um personagem vampiresco.
Na trama escrita por Ryan Ridley, da série cômica Community e do desenho animado Rick e Morty, a partir de uma ideia de Robert Kirkman, o criador do universo The Walking Dead, Robert Montague Renfield é um jovem imortal que, quando se alimenta de insetos, adquire superpoderes de combate. Essas habilidades são úteis para cumprir suas tarefas. Como Drácula diz, seu servo está confuso entre corresponder à "estranha moralidade" das pessoas comuns e atender ao apetite voraz do patrão. Então, em vez de trazer o "sangue puro de casais felizes, turistas desavisados, algumas freiras e um ônibus lotado de líderes de torcida", Renfield serve "lixo" ao mestre: traficantes, matadores e afins.
Claro que a cobrança vem forte. E é uma cobrança que já acontece há 90 anos, desde a tal ressurreição. Por isso, Renfield vem participando de um grupo de autoajuda à la Alcoólicos Anônimos (o processo requer 12 passos) para pessoas presas a relacionamentos abusivos e tóxicos. Mas as reuniões ocorrem em tom de comédia — uma das queixas ouvidas pelo facilitador da turma, Mark (Brandon Scott Jones, de Megarromântico), é a de uma garota que não aguenta mais escutar ska, o gênero musical preferido do namorado.
O início de Renfield chega a empolgar, mas os 93 minutos de duração parecerão pelo menos duas horas a partir do momento em que se desenvolve a subtrama policial, extremamente convencional, desinteressante e arrastada. Ao atacar um bando de criminosos, Renfield acaba atraindo a atenção de uma família de bandidos, os Lobos, chefiada pela personagem da atriz iraniana Shohreh Aghdashloo, indicada ao Oscar por Casa de Areia e Névoa (2003) e totalmente desperdiçada aqui. Prender o filho dela, o insuportável Teddy (Ben Schwartz, que faz a voz de Sonic nas adaptações cinematográficas), é o sonho de consumo de uma policial que quer honrar o pai: Rebecca (a rapper Awkwafina, considerada engraçada por muita gente, mas não por mim).
No cruzamento das trajetórias desses personagens, Renfield realça a versatilidade de Nicholas Hoult, que despontou com a comédia romântica Um Grande Garoto, quando tinha 12 anos, já estrelou filmes de ação, como Mad Max: Estrada da Fúria e os mais recentes dos X-Men, protagonizou a cinebiografia Tolkien e concorreu ao Emmy, ao Globo de Ouro e ao troféu do Sindicato dos Atores dos EUA pela série The Great. Mas deixa muito tempo escondido Nicolas Cage, que nasceu para interpretar um papel como o de Drácula, misturando carisma, extravagância e agressividade — e que, em uma carreira de altos (como o Oscar por Despedida em Las Vegas) e muitos baixos, voltou a surfar uma onda boa, vide seus desempenhos em Pig (2021) e o autorreferente O Peso do Talento (2022).
Renfield também corta muitas cabeças e faz jorrar muito sangue, sempre buscando efeito cômico, a exemplo do que se viu em O Urso do Pó Branco (2023). Mas faltou criar coadjuvantes mais envolventes e abraçar o absurdo e o exagero: ao tentar ser um filme razoavelmente palatável, acabou deixando um retrogosto que logo se esvanece.