Assim que os créditos finais de Coringa começam a descer na tela de um cinema de Porto Alegre, discussões acaloradas brotam entre as fileiras. “Tem sido sempre assim com esse filme”, diz o empregado que começa a fazer a limpeza da sala ao ver que a plateia se recusa a sair. O drama psicológico tem uma profundidade que não lembra as produções baseadas em quadrinhos de super-herói. A proposta do diretor Todd Phillips e de seu ator principal, Joaquin Phoenix, tem levado multidões aos cinemas e recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Para seus críticos, no entanto, o filme cruza uma linha ética e inclusive incentiva a violência.
– Coringa se destaca no cenário comercial dos filmes atuais, pois estamos vivendo um imaginário predominantemente infantil de obras sobre heróis e fantasia. Todd Phillips está construindo uma narrativa diferente, com uma perspectiva mais realista, sobretudo para uma adaptação de quadrinhos – diz o professor de cinema da PUCRS Eduardo Wannmacher.
O filme narra uma versão alternativa da origem do maior vilão do Batman. Arthur Fleck (Phoenix) é um sujeito com distúrbios mentais que faz bicos como palhaço enquanto sonha com uma carreira de stand-up. Sua personalidade violenta teria surgido como consequência de uma soma de fatores, como sofrer abuso na infância e ter de lidar com problemas mentais sem atendimento adequado. Ou seja, por boa parte do filme, o Coringa é mostrado antes como ser humano do que como monstro.
Longe de oferecer diversão leve, o diretor assumiu uma postura crítica ao universo dos filmes baseados em obras da DC Comics ou da Marvel.
– Filmes de heróis estão tomando conta da indústria, e eu estava procurando uma maneira de fazer algo que não desaparecesse em pleno ar. Para ser sincero, não gosto de filmes sobre HQs – disse Phillips, em entrevista à Folha de S.Paulo.
O roteiro não busca inspiração em gibis, mas sim em longas de Martin Scorsese como Taxi Driver e O Rei da Comédia – ambos protagonizados por Robert De Niro, que está em Coringa. Para a imprensa, o cineasta reforçou também a pretensão de realizar um filme para “conversar sobre coisas abaixo da superfície”. Mas a crítica Stephanie Zacharek, da revista Time, escreveu que “Phillips pode querer que a gente pense que ele está lançando um filme sobre o vazio da nossa cultura. Mas, na realidade, só oferece um excelente exemplo disso”.
Nos EUA, o temor de que o filme pudesse inspirar indivíduos com perfil incel – termo para “celibatários involuntários”, homens que culpam a sociedade por não conseguirem se relacionar com as mulheres – fez salas de cinema adotarem medidas especiais de segurança como proibir a entrada de pessoas fantasiadas. Famílias de vítimas do massacre de 2012 em Aurora, em que um atirador matou 12 pessoas em uma sessão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, fizeram uma petição para que a Warner apoiasse a luta pelo maior controle de armas de fogo no país. A resposta veio em uma carta do estúdio, que dizia que “uma das funções das histórias é provocar conversas difíceis sobre problemas complexos. Não é intenção do longa, dos cineastas ou do estúdio tratar esse personagem como um herói”.
O filme mostra que a violência contemporânea é resultado de um processo histórico social e coletivo. Não creio que estimule a violência. O mundo já está violento antes do filme.
OSCAR D’AMBROSIO
Jornalista, doutor em Educação
As conversas são difíceis até para Phoenix. O ator abandonou uma entrevista ao ser questionado por Robbie Collin, do Telegraph, se o Coringa poderia encorajar os atos de agressividade como os que retrata.
– Quem não sabe distinguir o certo do errado faz isso com qualquer coisa, letras de música ou trechos de livros. Não é responsabilidade de um cineasta ensinar a diferença entre o certo e o errado – disse o ator.
Um dos defensores de Coringa, o documentarista Michael Moore escreveu no Facebook que “o maior perigo para a sociedade pode ser não ver esse filme. As questões que ele levanta são tão profundas, tão necessárias que se você desviar o olhar da genialidade dessa obra de arte irá desperdiçar a reflexão que ela oferece”.
Estudo da violência
Criada para espelhar a Nova York dos anos 1980 e 70, a Gotham de Coringa exibe uma polarização política que remete a um movimento global. No filme, após assassinar três jovens aparentemente ricos no metrô, o protagonista se torna um símbolo dos oprimidos. Para o jornalista e doutor em Educação, Arte e História da Cultura Oscar D’Ambrosio, ele traduz um sentimento perigoso:
– O eixo que faz o filme funcionar está em mostrar como um rapaz oriundo de uma família desagregada que é explorado pelo patrão e pela sociedade no trabalho de palhaço vai crescendo em descontrole até se tornar um assassino. O curioso e significativo, porém, é que esse sentimento de raiva contra a sociedade é assumido pela população. A ideia de eliminar os poderosos ganha as ruas. O sentimento não é nobre, mas retrata uma percepção de mundo que parece tender a crescer.
‘Coringa’ é o caos. O que fazem dele pode vir a se inclinar para qualquer direção. O personagem representa uma massa desassistida que não encontra voz política. Captura a multidão para a violência antissistema.
ALEXANDRE LINCK
Professor da Unisul
Rebatendo as críticas de que o filme seria uma apologia à violência, o diretor do filme afirmou que a “extrema esquerda pode soar como a extrema direita”. No Brasil, por outro lado, uma das críticas com mais repercussão foi feita pelo assessor de Jair Bolsonaro para Assuntos Internacionais, Filipe Martins: “Uma demonstração do que a anomia social e o ressentimento esquerdista podem fazer com uma mente perturbada”, escreveu no Twitter.
Pesquisador de estética e quadrinhos, o professor da Unisul Alexandre Linck afirma que Coringa é um retrato político, mas não está ligado a uma ideologia definida:
– Coringa é o caos. O que fazem dele pode vir a se inclinar para qualquer direção. O personagem representa uma massa desassistida pelo Estado que não encontra voz política. Captura a multidão para a violência antissistema. A elite, distante, insensível na figura de Thomas Wayne, porém, com pretensões democráticas, acaba assassinada, sobrando para a próxima geração, no caso Bruce Wayne, o Batman, impor a ordem pela força e pelo medo.
Para o professor de cinema da PUCRS Eduardo Wannmacher, esse debate sequer tem importância:
– Acho essa discussão boba e inconsequente. Estamos tratando de cinema, de ficção, que tem a liberdade de criar o que quiser, pois não tem compromisso social e sim cultural. Coringa não é um personagem com posição política alguma. É um indivíduo que está vivendo em desespero. Filipe Martins se manifestou como o governo costuma fazer em assuntos que desconhece.
Apesar de estar presente em inúmeros filmes de Hollywood, a violência foi debatida com especial afinco no caso de Coringa. Para Wannmacher, isso ocorreu porque o filme se transformou em um fenômeno midiático e porque toca em um “mal estar contemporâneo”. Gotham e suas tensões sociais e econômicas podem “ser qualquer cidade urbana que conhecemos”.
Se, para alguns críticos, a violência é gratuita, para o professor Oscar D’Ambrosio ela está contextualizada:
– O filme mostra que a violência contemporânea é o resultado de um processo histórico social e coletivo. Não creio que estimule a violência. O mundo já está extremamente violento antes desse filme.
Para Linck, críticas que condenam a violência de Coringa são moralistas:
– Esse tipo de crítica moral é algo velho. Platão, em A República, já questionava a arte por seus efeitos nefastos na sociedade. Ocorre que a solução platônica foi a expulsão dos artistas, o exílio e a censura. No Brasil recente tivemos episódios assim, do Queermuseu ao beijo gay em uma HQ dos Vingadores, todos combatidos. Se entendermos que a responsabilidade sobre um objeto artístico é do objeto, e não nossa como observadores, damos licença para toda forma de tutela sobre a arte, além de nos infantilizarmos como sujeitos, exigindo sempre um pai censor. Assim como ninguém vira homossexual vendo um beijo gay, dificilmente alguém se torna um psicopata por causa de um filme.
Consequência do desamparo
A força de Coringa, para muitos, está na atuação de Phoenix.
– Ele vai de uma doçura ao ápice da violência na mesma cena. Essa é a transgressão e a catarse desse personagem – define Wannmacher. – Acho que não temos mais filmes assim no cinema atual. Por vezes, no entanto, acho que o roteiro cria maniqueísmos que conduzem a uma vitimização excessiva do personagem.
'Coringa' demonstra com clareza como a manifestação de sintomas psiquiátricos é pouco ou mal entendida socialmente, e o paciente, mesmo emocionalmente fragilizado, acaba por ser rechaçado.
ALCINA SOARES BARROS
Médica psiquiatra
No filme, a típica risada do Coringa é associada a uma patologia. Sendo assim, o filme torna-se um retrato e uma crítica à maneira como a sociedade marginaliza pessoas com doenças mentais. Para a médica psiquiatra Alcina Soares Barros, a ficção expõe problemas reais enfrentados por pacientes reais:
– Coringa demonstra com clareza como a manifestação de sintomas psiquiátricos é pouco ou mal entendida socialmente, e o paciente, mesmo emocionalmente fragilizado, acaba por ser rechaçado. O exemplo mais claro é a cena no ônibus, na qual ele queria apenas fazer uma criança sorrir com suas feições e expressões, e a mãe ficou incomodada. Além das demais vezes em que ele sorria involuntariamente em público.
Alcina ressalta que Coringa não pode ser diagnosticado como psicopata, já que sua agressividade é “reativa” e está ligada mais a uma percepção delirante da realidade do que a uma manifestação genuína da realidade.
– Ele poupou um dos colegas palhaços, dizendo que aquele sempre o tratou com dignidade, e o deixou fugir. Durante sua psicose, assassinou quem o violentava, o denegria, o rebaixava, o desafiava ou havia lhe manipulado e mentido, caso da mãe – afirma a psiquiatra. – O mal surge nele como uma forma de negar as emoções e lidar com as dores, mas foi perdendo a função de autoproteção que ele desenvolveu qualidades de superioridade, bloqueando seu contato com a realidade e com os outros.
– É inevitável alguns o verem como herói – conclui Alexandre Linck.
– Porém, o que está ali, durante todo o filme, é uma pessoa frágil, triste, egoísta. Gotham explica porque nascem os Coringas, embora isso não diminua o peso de suas ações.