Em uma era na qual estúdios de cinema e artistas fazem questão de reverenciar comunidades de fãs, o cineasta Todd Phillips (Se Beber, Não Case!) toma outro caminho ao explicar a razão de ter escolhido dirigir Coringa, a reimaginação perturbadora da origem do vilão do Batman.
— Filmes de heróis estão tomando conta da indústria e eu estava procurando uma maneira de fazer um longa que não desaparecesse em pleno ar. Para ser sincero, não gosto de filmes de HQs. Estaria mentindo se falasse que não foi para chamar a atenção das pessoas — disse Phillips, em entrevista à Folha de São Paulo.
O diretor conseguiu seu objetivo. O filme estreia mundialmente nesta quinta-feira (3) como um dos mais esperados do ano. Não apenas por ter vencido o Leão de Ouro no prestigiado Festival de Veneza, mês passado, mas por ser um drama pesado com classificação indicativa para maiores de 16 anos no Brasil, algo incomum para produções baseadas em gibis.
Coringa deve render cerca de US$ 150 milhões no primeiro fim de semana. Também por causa das polêmicas orbitando a reinterpretação do personagem vivido pelo ator Joaquin Phoenix (Gladiador).
Nesta nova origem, Arthur Fleck (Phoenix) é um aspirante a comediante que sobrevive fazendo bicos como palhaço de aluguel numa Gotham City decadente entre o fim dos anos 1970 e começo dos 1980.
O roteiro de Phillips e Scott Silver (de O Vencedor, com Mark Whalberg) mostra um personagem com distúrbios mentais que comete uma série de assassinatos após várias tragédias geradas por crises econômicas, abusos na infância, cortes no sistema de saúde e incapacidade de se relacionar.
— Não queria mostrar Arthur caindo em um tonel de ácido e aparecendo com a pele branca. O objetivo é entender o porquê daquele sujeito se maquiar como um palhaço no fim — explica o diretor.
A trama foi recebida com reações extremas no Festival de Veneza. Alguns críticos americanos acusaram Coringa de ser uma apologia do movimento "incel", termo oriundo dos "celibatários involuntários", homens raivosos que não conseguem se relacionar e culpam a sociedade e, principalmente, as mulheres por suas inadequações.
"Coringa quer ser um filme sobre o vazio da nossa cultura. Em vez disso, é um exemplo primário e perigoso dela", destacou a revista Time. A Vanity Fair disse que o longa pode ser "um panfleto irresponsável".
— Conversamos frequentemente sobre a ponta do iceberg, mas nunca falamos sobre as coisas que nos levam para a ponta do iceberg, como o sistema em que o personagem é jogado no filme. Quero que comecemos a conversar sobre as coisas abaixo da superfície e o filme tenta fazer isso sem se tornar muito pesado — confirma Todd Phillips, dias antes de ser apresentado em Veneza.
Phillips e seu astro, Joaquin Phoenix, evitaram falar sobre o arco do Coringa no filme, que vira um símbolo dos oprimidos de Gotham após matar três yuppies abusadores no metrô.
— Um jovem de 18 anos pode assistir e achar que é a origem do Coringa. Outra pessoa pode dizer que é o espelho da sociedade, sobre lutas de classes. Não queremos explicar o filme, pois o sentimento do espectador e como ele enxerga a obra são o mais interessante — acredita o cineasta.
Mas a estratégia não durou muito tempo. Com a epidemia de tiroteios nos Estados Unidos, muitos anteciparam Coringa como um veículo de justificativa para a violência. Tanto que a Landmark Theaters, maior cadeia de cinema independente do país, proibiu fantasias de Coringa durante a estreia do filme. Em Los Angeles e Nova York, a polícia enviará um efetivo maior para os cinemas como forma de precaução.
— O filme fala sobre traumas de infância e a ausência de amor e compaixão no mundo. Acho que as pessoas podem suportar essa mensagem — declarou o diretor ao site IGN.
— Aqueles que não sabem distinguir o certo do errado fazem isso com qualquer coisa, letras de música ou trechos de livros. Não acho que seja responsabilidade de um cineasta ensinar moralidade ou a diferença entre o certo e o errado. Acho que isso é óbvio — completou Joaquin Phoenix.
Mesmo assim, as famílias do massacre em um cinema de Aurora, Colorado, em 2012, durante uma sessão de Batman - O Cavaleiro das Trevas, enviaram uma carta pública ao estúdio Warner. Nela, se dizem preocupadas com o fato de o longa tratar o Coringa como uma figura pela qual as pessoas podem ter simpatia e pedem ajuda para um maior controle de armas.
A Warner respondeu falando sobre doações a grupos de apoio a vítimas de violência e de controle de armas, mas diz acreditar também que "uma das funções das histórias é provocar conversas difíceis sobre problemas complexos. Não é intenção do longa, dos cineastas ou do estúdio tratar esse personagem como um herói", finaliza a declaração.
— A violência no meu filme é mais visceral, porque queria ter um impacto, já que não são tantas cenas. Outros filmes matam 40 mil pessoas e ninguém nem se importa, porque está anestesiado. A violência que acontece em Coringa é para o espectador sentir — finalizou o diretor do longa.