A história está contada em Batman & Me, autobiografia de Bob Kane (1915-1998), que vem a ser o criador do Batman (ou, segundo algumas versões mais recentes, o picareta que roubou os créditos do verdadeiro autor, já chegamos a isso). Enquanto bolavam um novo antagonista para o detetive fantasiado de morcego, que naquele 1940 estrearia sua própria revista, depois de meses sendo publicado na Detective Comics, Kane disse a seu parceiro Bill Finger que poderiam trabalhar com algum sucesso a ideia de um vilão inspirado na carta do Joker no baralho, que aqui é chamado de Curinga – uma ideia que lhe teria sido apresentada primeiramente por Jerry Robinson, que sempre reivindicou crédito igual pela criação do personagem. Aliás, livros posteriores, como Bill: The Boy Wonder, publicado em 2012 pelo escritor Marc Tyler Nobleman, defendem que Kane não teve inspiração alguma, que a maioria das ideias foi realizada por Finger sozinho ou em parceria com Robinson, e Kane se apropriou do trabalho como dono do estúdio.
O ponto é que em 1941 alguém da equipe criativa teve a ideia de fazer um vilão baseado na carta do Curinga. A carta, vocês vão lembrar, traz a figura de um palhaço, um bufão, um truão, um bobo-da-corte – o que é bastante lógico se a gente parar para pensar. As cartas que conhecemos hoje surgiram na Idade Média, e os valores das mais altas representam de forma estilizada personagens das cortes monárquicas europeias: o 13 como rei, o 12 como a rainha, o 11 como valete e o Curinga sem valor definido. Isso porque os curingas, os bufões, os "jokers" ("brincalhão" ou "piadista" em inglês) eram funcionários da corte, com a tarefa de divertir os reis com poemas, músicas, pantomimas. E, o que é fundamental, com liberdade para abertamente mofar do rei apelando até mesmo para o ridículo
Tal tradição vinha das cortes cristãs romanas e bizantinas, influenciadas por um certo pensamento estoico que lembrava que a vida e suas glórias eram sempre transitórias, e que ter consciência disso era o antídoto para a ilusão do poder. Pela mesma lógica, sempre que um papa era eleito, desfilava perante a multidão acompanhado de um sujeito que tinha a incumbência de ficar repetindo atrás dele o tempo todo: "memento mori", ou "lembras-te de que és mortal".
Mas vamos tentar sair logo da carta. O "curinga" representava esse papel ambivalente de um funcionário do rei com procuração para falar ao soberano com os termos do povo, e portanto podia ser usado assumindo o valor necessário para fechar uma determinada combinação de cartas. Há algumas versões também segundo as quais o curinga é uma evolução nas cartas europeias do "louco" do tarô.
Voltando a Bob Kane, Bill Finger e a ideia do Coringa (a grafia nos quadrinhos contraria a norma da língua e usa o "o". Este texto delicioso explica por quê), a caracterização visual do personagem surgiu quando o desenhista Finger foi até sua estante, recolheu um livro com fotografias de cinema marcou a página com uma foto do filme de 1928 O Homem que Ri, protagonizado por um ator chamado Conrad Veidt em uma assustadora caracterização:
O filme era uma adaptação do romance de mesmo nome, uma incursão do monstro (metafórico) literário francês Victor Hugo pelo universo dos monstros (agora reais) físicos da sociedade, a exemplo do que já havia feito em Notre Dame de Paris, romance também chamado de O Corcunda de Notre Dame. A história de O Homem que Ri conta a trajetória de um menino inglês raptado por um grupo de traficantes de crianças especializados em produzir deformidades físicas para poder vender suas vítimas a circos de aberrações, na época muito comuns. É o caso do personagem principal do romance, Gwineplaine (em algumas traduções Gwynplaine) – que, mais tarde, com o avanço da trama, se tornará adulto, atração de um circo itinerante e então descobrirá que era o filho raptado de um nobre inglês com lugar na Câmara dos Lordes.
Como explica o acadêmico Graham Robb no livro Victor Hugo: uma Biografia (Record, 2000, 654 páginas):
L'Homme que Rit pretendia ser "um verdadeiro quadro da Inglaterra, pinçado por meio de personagens inventadas", e portanto, segundo Hugo, não era um romance histórico no sentido tradicional. Atingia sua "verdade" pelo que parecia um caminho em círculos: a história de um menino chamado Gwineplaine, raptado na infância pelos "comprachicos" ("compradores de crianças" – uma tribo multinacional de nômades que praticava a arte da mutilação cosmética e vendia a circos os frutos de sua indústria macabra). A mutilação realizada em um Gwineplaine é uma gargalhada hedionda, fixa: "Qualquer que fosse a emoção por ele sentida, servia para intensificar e agravar aquela estranha expressão de alegria."
O gênio de Hugo mostrou-se certeiro ao revestir de horror o gesto símbolo da alegria e da felicidade. E o visual de Veidt, ator alemão ícone do expressionismo, que já havia atuado em O Gabinete do Dr. Caligari e que mais tarde ficaria bastante conhecido como o major nazista vilanesco de Casablanca, provocou tal impacto em Finger que a referência visual fica clara nas primeiras edições em que o vilão aparece. Compare o rosto de Veidt no cartaz com os traços do desenho abaixo, a primeira cena da primeira história do vilão, no número 1 da revista solo do Batman, em 1940:
É interessante notar também que a ideia original de Victor Hugo, a da figura trágica que expressa qualquer emoção por meio de um sorriso congelado no rosto, norteou Tim Burton (um gótico assumido) na sua interpretação do Coringa no filme de 1989, com Jack Nicholson no papel do vilão. Diferentemente dos quadrinhos, em que o Coringa tem uma mobilidade de expressões faciais maior, no filme, Nicholson, ao cair em um tanque de produtos químicos em uma fábrica de cartas de baralho, ficava com os nervos da face lesados e com um esgar perpétuo marcado no rosto.
O mesmo tema seria revisitado por Christopher Nolan no seu Batman: O Cavaleiro das Trevas, no qual o vilão é vivido por Heath Ledger. Mas um toque a mais de crueldade o torna bastante aparentado com o "homem que ri" original de Victor Hugo: o Coringa tem um sorriso perpétuo no rosto em formato de feias cicatrizes de faca ou navalha que partem da comissura dos lábios. É um dos elementos que marcam a personalidade do Coringa no filme o fato de que, a cada vez que apresenta a origem das marcas, a história muda.
Mudanças são também a tônica da própria caracterização do Coringa. Sua origem já teve diversas versões nos quadrinhos. Em algumas delas, ele era um criminoso de terceira que, durante um assalto a uma fábrica de cartas, foi derrubado pelo Batman em um tanque de produtos químicos (o Coringa de Nicholson e o de Jared Leto claramente seguem essa versão). Na clássica versão de Alan Moore em A Piada Mortal, que de algum modo inspira o novo longa com Joachin Phoenix, o Coringa é um cômico de palco aliciado para o tal assalto para fingir ser outro criminoso, o Capuz Vermelho.
Apelidado justamente de "palhaço do Crime", o personagem é, tanto como nos quadrinhos, reinterpretado a cada vez que um ator o assume, cada qual enfatizando um aspecto de sua personalidade fraturada, ora pendendo para o lado "palhaço", ora para o lado "crime". Insano e sarcástico, o vilão já foi mostrado como um psicopata assassino em massa, um gângster em disputa de território com outros criminosos de Gotham, um gênio do crime, um cômico histriônico que comete crimes com o auxílio de bugigangas temáticas como dentaduras risonhas e flores falsas. Embora tenha tido sua personalidade amenizada nos anos 1950 e 1960 devido à censura autoimposta das empresas de quadrinhos, o Comics Code Authority, o personagem ao longo do tempo foi o responsável por alguns dos momentos mais violentos das histórias do Batman, como o atentado que deixou Barbara Gordon, a Batgirl, paraplégica, e a morte (mais tarde revertida) do segundo Robin, Jason Todd, que havia substituído Dick Grayson como o parceiro do herói.
A nova versão prestes a estrear foca no lado psicopata do personagem (em uma época em que psicopatas têm sido alvo de interesse cada vez maior da cultura pop, como provam os sucessos recentes da série Mindhunter e de filmes como O Bar Luva Dourada, de Fatih Akin, Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal, de Joe Berlinger, ou o próprio Era uma Vez... em Hollywood, de Quentin Tarantino). Por isso, tem ganhado cada vez mais críticas sobre a propriedade de seu retrato. A questão é que a ideia de o Coringa ser uma força aterrorizante não é uma invenção de Christopher Nolan ou de Todd Phillips, é uma volta a um conceito surgido antes mesmo de haver um Coringa nos quadrinhos, e que de algum modo ajudou a formá-lo.
Assista ao trailer final de Coringa: