Coringa é um problema. Um bom filme, mas, definitivamente, um problema. E não tem nada a ver com ilações ideológicas. Li análises apontando que o filme seria de esquerda ou de direita. Não é nada disso. Coringa apenas cumpre o papel mais importante em um tipo de arte narrativa, como são o cinema e a literatura: o de contar bem uma boa história.
Na arte, ao fim e ao cabo, tudo se resume a isso: contar bem uma boa história. Todas as demais pretensões são subalternas à realização dessa tarefa que parece tão simples.
Há uma outra qualidade que torna um filme superior. É quando ele consegue entrar no espectador, fazendo com que o espectador entre nele.
Acho que a frase ficou confusa. Vou explicar.
É assim: se o filme é superior, você sai do cinema pensando no que viu e continua pensando no dia seguinte. Quer dizer: o filme entrou em você. Mas, além disso, você sai do cinema sentindo o clima da trama, como se fosse um dos personagens. Quer dizer: você entrou no filme.
Coringa alcança essa façanha. A começar pelo cenário. Gotham City é Nova York, mas não a Nova York de hoje, descolada, dinâmica, feérica, a capital do mundo, e sim a dos anos 1970, suja, sombria e perigosa, habitada por pessoas permanentemente tensas, que se deslocam em vagões do metrô pichados de alto a baixo, cheia de becos imundos onde ratazanas bem fornidas passeiam em meio aos sacos de lixo. Para chegar em casa, um apartamento escuro em que a mãe doente o espera na cama, o Coringa tem de subir por uma escadaria que se assemelha à de O Exorcista. Não deve ser por acaso.
Não há sol nessa Gotham triste, não há alegria.
Aliás, a alegria é o tema do filme. Ou, antes, a falta dela. O drama do Coringa é que ele quer ser alegre e não consegue. Sua gargalhada jamais é de felicidade; é de desespero. Ele ri só com o corpo, como se fosse uma convulsão. E aí entra o talento de Joaquin Phoenix. Interpretar vilões caricatos é mais fácil do que expor as emoções de um personagem, digamos, “normal”. No vilão caricato, tudo é explosivo e exagerado, não há nuances de sentimentos. Mas o Coringa de Joaquin Phoenix não é assim. Ele é um pobre coitado que se constrói na loucura. Ou se destrói, depende do ponto de vista.
Em certo momento da história, você torce para que ele reaja, para que ele seja mau com quem lhe faz mal, e essa é outra das polêmicas de Coringa. Ao tornar demasiado humano o vilão, o filme não suscitaria uma justificativa para a violência?
A resposta é: bobagem.
Quando uma pessoa é violenta, ela cometerá violências, não importando a causa. Se não for por religião, será por política, ou futebol, ou um filme. Motivo ela encontrará, sem que o motivo tenha responsabilidade por isso.
O problema do Coringa não é nenhum desses que citei. O problema é que o Coringa é um dos arqui-inimigos do Batman, e o Batman é um personagem de história em quadrinhos. Nos quadrinhos, se há mortes, elas são assépticas. No máximo, uma explosão impessoal ou um tiro a distância, de preferência com pouco ou nenhum sangue. Personagens de histórias em quadrinhos não têm entranhas e seu sofrimento é óbvio, em geral causado por um evento traumático. Mas o Coringa sofistica o sofrimento. Ele não sofre grandemente, ele sofre miseravelmente. Ele sofre como um comum. Como um de nós. Esse requinte torna o filme maior, mas o remove da categoria em que estava inscrito. Coringa talvez não possa ser considerado um filme que se baseia em uma história em quadrinhos. Ou, o que é mais grave, talvez o Coringa tenha transformado as histórias em quadrinhos. Agora, elas terão de sair da superfície. Terão de ser um pouco mais profundas. É um perigo. Porque alguns, quando querem ser densos, conseguem ser apenas chatos.