Há rumores de que ele vai voltar, mas, oficialmente, Jason Bourne (2016), cartaz do Domingo Maior neste fim de semana, na RBS TV, marca a despedida cinematográfica do personagem que exerceu grande influência nos filmes de espionagem e ação.
Como seu antecessor com as mesmas iniciais (James Bond), Jason Bourne nasceu nas páginas de um livro. Foi criado pelo escritor americano Robert Ludlum (1927-2001), autor de uma trilogia publicada entre 1980 e 1990 — as adaptações para o cinema seguiram os mesmos títulos: A Identidade Bourne, A Supremacia Bourne e O Ultimato Bourne. Depois, outro romancista, Eric van Lustbader, escreveu mais 11 aventuras do herói, entre 2004 e 2017.
Ludlum morreu pouco antes da estreia de A Identidade Bourne (2002), em que personagem interpretado por Matt Damon surge flutuando no Mar Mediterrâneo, com dois tiros nas costas. Aos poucos, ele vai descobrir que é um assassino de elite da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos.
A direção coube ao americano Doug Liman, mas quem deu rosto e corpo à franquia foi o inglês Paul Greengrass, que assinou A Supremacia Bourne (2004) e O Ultimato Bourne (2007) e também este Jason Bourne. Entre o terceiro e o quinto filme, houve O Legado Bourne (2012), dirigido por Tony Gilroy e protagonizado por Jeremy Renner, sem impacto algum na trama que a RBS TV exibe a partir de 22h30min deste domingo (3).
Greengrass trouxe para o universo de Bourne as armas de sua filmografia: o realismo cru, em tom semidocumental, mas com pontos de vista subjetivos, e o uso de câmera na mão. Esse senso de urgência é acentuado por uma montagem sufocante, e para esquentar ainda mais o ambiente, o diretor adota um método caótico: não isola seus cenários, ou seja, os atores misturam-se à multidão que frequenta, por exemplo, a estação de metrô Waterloo, em Londres (em O Ultimato Bourne). Uma sequência de perseguição automobilística em Las Vegas, em Jason Bourne, destruiu 170 carros.
Tamanho verismo causa um paradoxo: se por um lado torna a ação mais espetacular, por outro é uma tentativa de evitar a espetacularização da violência (como já indicava, por exemplo, o vômito da personagem Marie em A Identidade Bourne, após ver um homem se jogar para a morte, e também a romaria de Jason para pedir perdão a suas vítimas em A Supremacia Bourne). Sem o distanciamento dos efeitos especiais ou das frases de efeito, sentimos com os personagens cada golpe.
O cineasta também levou para os thrillers do espião sua veia política e jornalística. Ele é o autor de Domingo Sangrento (2002), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, uma reconstituição do massacre de manifestantes católicos por soldados britânicos na cidade de Derry, na Irlanda do Norte, em 1972; de Voo United 93 (2006), que reencena as últimas horas da tripulação, dos passageiros e dos terroristas no único avião sequestrado no 11 de Setembro a não atingir seu alvo; também com Matt Damon, fez Zona Verde (2010), sobre a guerra no Iraque; e, em Capitão Phillips (2013), contou a história do marinheiro mercante levado como refém por piratas somalis em 2009.
Sob o comando de Greengrass, Jason Bourne, criado na época da Guerra Fria, passou por um banho de contemporaneidade. Ele continua sendo um agente secreto que sofreu lavagem cerebral ao ser treinado para missões cuja responsabilidade não pode ser assumida publicamente pelo governo dos EUA — por exemplo, o assassinato de chefes de Estado. Mas, na ausência dos vilões soviéticos, agora lida com a globalização do terrorismo, a polêmica política de segurança e vigilância americana, a perda da identidade.
Em Jason Bourne, o protagonista vai da Islândia a Las Vegas, passando por Atenas e Londres, tentando recordar de seu passado enquanto se enreda pelos bastidores das sujeiras do diretor da CIA (Tommy Lee Jones) e do agente secreto a quem este confia suas missões escusas (Vincent Cassel). O inimigo, portanto, é o próprio governo dos EUA. Além disso, ao abordar a obscura relação da agência com uma empresa global de tecnologia (cujo CEO é vivido por Riz Ahmed, de O Som do Silêncio) para monitorar os passos virtuais de todos os cidadãos, Paul Greengrass cita explicitamente o caso Edward Snowden, informante que revelou esquema semelhante em 2013.
Com o sucesso comercial (US$ 1,6 bilhão no total) e artístico da franquia (O Ultimato Bourne valeu o Oscar de edição a Christopher Rouse, e a trilogia original foi adquirida pelo MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova York, que a exibiu e promoveu debates com diretor e equipe), esse estilo e essa abordagem inspiraram outras obras. A câmera e a edição nervosas podem ser vistas na trilogia Busca Implacável (2008-2015), que transformou o veterano Liam Neeson em um astro tardio do gênero. Salt (2010) é praticamente uma versão feminina de Bourne: Angelina Jolie encarna uma agente da CIA acusada de traição e colaboração com os russos. Mas a principal influência foi sentida na franquia 007. Em Cassino Royale (2006), a estreia do ator Daniel Craig no papel que imortalizou Sean Connery, James Bond assume uma persona mais bruta. O mesmo acontece nas cenas de ação, mais realistas e urgentes.
Se Jason Bourne vai voltar ou não, o tempo dirá. A pandemia congelou planos em Hollywood — em maio passado, o produtor Frank Marshall confirmou que estava procurando um diretor para recomeçar a franquia. Enquanto isso, a dica é fechar este domingo em alta voltagem com a última missão do agente secreto.