O filme que encerrou a competição do Festival de Cannes deste ano é, no mínimo, desconcertante – há quem possa qualificá-lo ainda como chocante, hipnotizante, apelativo, sedutor ou ultrajante. Aqueles familiarizados com o cinema de Paul Verhoeven apostam na intenção do diretor de que Elle fosse tudo isso, transitando também por diferentes gêneros – do thriller de suspense à comédia negra, passando pelo drama de costumes. Acima de qualquer julgamento ou definição, porém, o longa indicado pela França para disputar uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro é um tour de force de uma das maiores atrizes do cinema contemporâneo: a francesa Isabelle Huppert.
Em Elle ("ela", em francês), em cartaz a partir desta quinta-feira nos cinemas, a intérprete encarna a poderosa Michèle, executiva rica e sofisticada que dirige uma empresa de videogames ao lado da amiga Anna (Anne Consigny). Na sequência inicial do filme, a protagonista é brutalmente atacada e estuprada dentro de sua refinada casa por um homem mascarado. A reação da personagem à agressão é inusitada: Michèle não procura a polícia nem tenta saber quem é o violador, seguindo com sua rotina em aparente normalidade. Apenas quando passa a receber recados do criminoso é que o episódio começa a merecer mais sua atenção. De novo, a atitude da mulher é inaudita: depois de identificar o estuprador, Michèle estabelece com ele um jogo sadomasoquista de consequências perigosamente desconhecidas.
Paralelamente à trama criminal, Elle acompanha o cotidiano de sua heroína, que trata com deliciosa ironia ácida e impaciência os colegas de trabalho, os parentes e os amigos – gente burguesa alienada e aparvalhada, em especial os homens, como o inseguro ex-marido Richard (Charles Berling), um escritor quase bem-sucedido, e o filho Vincent (Jonas Bloquet), jovem imaturo tiranizado pela namorada (Alice Isaaz). Michèle não poupa nem o amante, casado com sua sócia: "Sua estupidez foi o que me atraiu inicialmente", diz sem cerimônia a Robert (Christian Berkel). Colocando tudo em perspectiva, está o passado familiar de Michèle: o pai cumpre prisão perpétua por ter perpetrado uma bárbara chacina décadas atrás.
Como sempre procura fazer em seus filmes, o cineasta holandês Paul Verhoeven eiva Elle de ambiguidade: o filme evoca a sensualidade mórbida de Instinto selvagem (1992), a violência explícita e às vezes cômica de Conquista sangrenta (1985) e a instabilidade moral de RoboCop (1987) – todos títulos dirigidos por Verhoeven. Entretanto, a grande responsável por dar concretude e verossimilhança à complexa personagem adaptada do romance Oh..., do escritor francês Philippe Djian (autor de Betty Blue), é Isabelle Huppert. Onipresente em cena, a diva humaniza as contradições de Michèle – e, por extensão, do filme, que pode passar da misoginia deplorável ao feminismo triunfante com uma simples boutade de sua intérprete de presença avassaladora.
ELLE
De Paul Verhoeven
Drama, França/Alemanha, 2016, 130min.
Estreia nesta quinta-feira nos cinemas.
Cotação: 4 estrelas (de 5).