Quando Napoleão (Napoleon, 2023) estreou nos cinemas, em novembro, falou-se que a duração do filme pularia de 158 minutos para quatro horas ao ser lançado no streaming, de modo a preencher lacunas históricas e reduzir os saltos temporais. Mas a versão da cinebiografia dirigida por Ridley Scott e protagonizada por Joaquin Phoenix que entra no menu da Apple TV+ nesta sexta-feira (1º) é a mesma, sem acréscimo de cenas.
Indicado ao Oscar nas categorias de design de produção, figurinos e efeitos visuais, Napoleão tem seus melhores momentos na reconstituição de duas grandes batalhas. A primeira é a de Austerlitz, travada em 2 de dezembro de 1805 pelo exército francês contra forças austro-russas em uma localidade que hoje pertence à República Tcheca; a outra é a de Waterloo, em 18 de junho de 1815, na atual Bélgica, onde o personagem principal enfrentou britânicos e prussianos. Esses dois momentos ressaltam virtudes e falhas de Napoleão Bonaparte (1769-1821), como sua genialidade na estratégia militar e sua ambição desenfreada e sanguinária — um letreiro informa que as guerras napoleônicas provocaram 3 milhões de mortes.
Entre essas duas sequências vigorosas, contudo, Scott perde um bocado de tempo no retrato do relacionamento tóxico do protagonista com Josefina de Beauharnais (papel de Vanessa Kirby, concorrente ao Oscar de melhor atriz por Pieces of a Woman), um romance que se mostra duplamente infértil — tanto no âmbito da narrativa quanto no intuito de envolver ou emocionar o público. O saldo final é uma cinebiografia que, para usarmos o vocabulário de guerra, jamais conquista, mesmo com um orçamento na casa dos US$ 200 milhões e com a aliança entre um cineasta que tem larga experiência em comandar épicos e um ator condecorado que é célebre por sua bravura.
Scott, 86 anos, e Phoenix, 49, já haviam trabalhado juntos em Gladiador (2000), que valeu a ambos uma indicação ao Oscar — respectivamente, de melhor diretor e ator coadjuvante. O currículo do cineasta inglês é marcado por recriações de períodos, personagens e episódios históricos — além do filme sobre o general do Império Romano que vira escravo e vai lutar pela sobrevivência na arena, podemos citar 1492: A Conquista do Paraíso (1992), Falcão Negro em Perigo (2001), Cruzada (2005), O Gângster (2007), Robin Hood (2010), Êxodo: Deuses e Reis (2014), Todo o Dinheiro do Mundo (2017), Casa Gucci (2021) e O Último Duelo (2021). Em Napoleão, ele revisita a época de seu primeiro longa-metragem, o ótimo Os Duelistas (1977).
Napoleão Bonaparte, por sua vez, é mais um personagem conturbado na galeria de Phoenix, que disputou o Oscar de melhor ator por Johnny & June (2005) e por O Mestre (2012) e venceu por Coringa (2019). No cinema, o imperador francês que quase dominou a Europa inteira é recorrente desde os primórdios, como no filme mudo Napoleão (1927), de Abel Gance. Entre seus intérpretes, estão Marlon Brando (em Désirée, o Amor de Napoleão, de 1954), Rod Steiger (Waterloo, 1970), Philippe Torreton (Mounsieur N, 2003), Ian Holm (As Novas Roupas do Imperador, 2003) e Daniel Auteuil (Meu Caso com o Imperador, 2006) — infelizmente, nenhum desses títulos está disponível no streaming.
Napoleão e Josefina, Ken e Barbie
Com roteiro de David Scarpa, que lança mão da vasta coleção de cartas de amor escritas por Napoleão, o filme comete o pecado de muitas cinebiografias: tenta abarcar uma grande fatia da vida do protagonista. O recorte de tempo não chega a ser comprido — vai de sua ascensão, em 1793, após a bem-sucedida tática na retomada da cidade de Toulon, a seu desterro em Santa Helena, uma remota possessão britânica no Atlântico Sul, depois da fragorosa derrota em Waterloo. Mas há muitas paradas a serem feitas: a expedição ao Egito em 1798, a coroação em 1804, a batalha de Borodino, na Rússia, em 1812, o exílio e a fuga da ilha de Elba... Claramente a montagem assinada por Claire Simpson (oscarizada por Platoon e indicada por O Jardineiro Fiel) e Sam Restivo dá saltos bruscos, condensa passagens, despreza contextualizações (adoraria ver as conversas sobre o que cortar e o que manter).
A pressa é um problema que, em tese, deveria estar amenizado na prometida versão do diretor. O espectador não deve esperar discussões geopolíticas, por exemplo, nem entender a relação da sociedade francesa com Napoleão Bonaparte e os métodos que ele usou para ampliar e se perpetuar no poder. Aliás, a julgar pela visão de Scott, as motivações e as ações de Napoleão parecem decorrentes principalmente da sua paixão por Josefina — e da sua frustração com Josefina (não é à toa que o crítico do jornal francês Le Figaro brincou que o filme deveria se chamar "Barbie e Ken sob o Império"). É como se ele quisesse conquistar o mundo para impressionar a esposa, mas ao fazer isso, ao se distanciar de Paris por longos períodos, se expõe ao sofrimento da saudade e do ciúme (seu desamparo chega a ser infantil). Os dois personagens vivem um ciclo vicioso, pautado por sexo frio e mecânico, infidelidade, xingamentos, agressões e até uma guerra de comida. A cereja do bolo é a incapacidade de gerarem um filho, ou seja, um herdeiro, sinônimo não só de potência masculina, mas também de continuidade e de uma certa estabilidade nas monarquias.
Historiadores apontam imprecisões em "Napoleão"
Também como muitas cinebiografias, Napoleão toma as chamadas liberdades artísticas. Por exemplo, coloca o protagonista como espectador da decapitação da rainha Maria Antonieta, após a Revolução Francesa, o que foi refutado pelo historiador Dan Snow assim que saiu o trailer do filme. Tampouco a monarca estava com os cabelos longos e encaracolados: sua cabeça fora raspada antes da guilhotina cair sobre ela. Mas talvez a mais grosseira falta de acurácia seja a cena em que o personagem de Joaquin Phoenix bombardeia uma pirâmide egípcia. Ridley Scott disse que "era um jeito rápido de mostrar que ele conquistou o Egito".
Em vídeos de making of e outras entrevistas, o diretor adotou um tom mais debochado, tornando-se ele próprio um personagem mais interessante do que seu Napoleão. Sobre as queixas de publicações da França, respondeu que "os franceses não gostam nem de si mesmos". Mas seu principal alvo são os historiadores: "Eles estavam lá para saber como foi?", retrucou Scott. "Há 400 livros escritos sobre Napoleão", continuou. "Talvez o primeiro tenha sido o mais preciso, o próximo já está fazendo uma versão do autor. Quando você chega ao livro 399, adivinhe, há muita especulação." À revista New Yorker, o cineasta sugeriu que os especialistas arranjassem o que fazer na vida (get a life).
Até nas reconstituições de batalhas existem imprecisões, algumas delas gritantes, segundo afirmou em seu canal no YouTube o crítico Waldemar Dalenogare Neto, que também é doutor em História e professor na Universidade de Boston, nos Estados Unidos. Ainda assim, diante de um roteiro raso, de uma montagem mutiladora e do desempenho opaco de Joaquin Phoenix, são essas cenas que engrandecem Napoleão. Às vezes, pode nem haver combate: um dos momentos mais marcantes é o da tomada de Moscou, deixada para trás e incendiada pelos russos. Resta a Napoleão sentar em um trono abandonado em uma cidade vazia e destruída. Uma vitória sem orgulho.
Quando há confronto, Ridley Scott orquestra espetáculos, mesmo que mórbidos e tétricos — e ainda que em uma versão resumida, como no caso de Waterloo. Mas os muitos minutos dedicados a Austerlitz estão entre os mais impactantes da temporada. Travada em parte sobre um lago congelado, essa batalha é considerada a obra-prima do gênio estratégico de Napoleão Bonaparte. Scott comandou um trabalho à altura, orientando o diretor de fotografia polonês Dariusz Wolski (indicado ao Oscar pelo faroeste Relatos do Mundo) a filmar com múltiplas câmeras (de quatro a 11 simultaneamente), realizando cenas subaquáticas em um tanque de um estúdio na Inglaterra e empregando 400 dublês e cem cavalos — a computação gráfica foi usada apenas para expandir as fileiras atrás dos soldados. Nenhum equino se feriu, garantiu o cineasta ao site Vulture: "Eu amo animais, então os protejo como um louco. Qualquer cavalo que você vê voando pelo ar neste filme é um boneco".