A tradição de o cinema adaptar obras literárias é antiquíssima: começou nos primórdios da chamada sétima arte, em 1899, quando o pioneiro francês George Méliès produziu um filme baseado no conto de fadas Cinderela, dos Irmãos Grimm. Um ano antes, houve um curta americano inspirado em Macbeth, de William Shakespeare, disparado o autor mais levado às telas, incluindo as da televisão e do streaming — como o teatro é um parente bem próximo, dramaturgos têm vantagem sobre romancistas, contistas, poetas, historiadores e jornalistas nessa "competição".
Feita em homenagem à Feira do Livro de Porto Alegre, que vai até 15 de novembro, a lista abaixo apresenta cinco dos escritores mais amados pelo cinema e pela TV. Não é um ranking apenas quantitativo, embora o número de adaptações tenha sido um critério. Procurei mostrar épocas e gêneros distintos — há uma autora do começo do século 19 e expoentes da ficção científica, do suspense e do terror, por exemplo. Evidentemente, o gosto pessoal também pesou.
William Shakespeare (1564-1616)
O site IMDb, o mais popular banco de dados da internet sobre filmes e séries, lista 1.537 obras baseadas em Shakespeare, aí incluídos oito projetos anunciados, 13 em pré-produção, dois que estão sendo filmados e 10 que já entraram em pós-produção ou estão esperando lançamento. O número dimensiona não somente o tamanho de sua obra, mas sobretudo sua relevância e sua eterna atualidade — o dramaturgo inglês ajudou a inventar a forma como olhamos para nós mesmos, trafegando entre a tragédia e a comédia, entre o romance e a política. O número também dificulta a tarefa de indicar as melhores adaptações, mas vamos tentar.
O Hamlet de 1948, dirigido e estrelado por Sir Laurence Olivier, foi a única adaptação a ganhar o Oscar de melhor filme, além de ator, direção de arte e figurinos em preto e branco — Shakespeare Apaixonado (1998), que recebeu sete estatuetas, romantiza a vida do bardo. Hamlet também rendeu, em 2009, um virtuoso telefilme, versão de uma peça que moderniza a história do atormentado príncipe da Dinamarca — aqui interpretado pelo ótimo ator escocês David Tennant (das séries Doctor Who e Good Omens).
Falando em modernização, recomendo o Ricardo III (1995) com Ian McKellen, em uma Inglaterra distópica e fascista da década de 1930, e o Romeo+Julieta (1995) de Baz Luhrman, em que os personagens de Leonardo DiCaprio e Claire Danes trocam a Veneza antiga por uma ensolarada Califórnia dos anos 1990.
A relação de dicas não para: tem o Macbeth de Orson Welles (1948) e o mais recente (2015), com Michael Fassbender e Marion Cotillard, tem o Júlio César (1953) com Marlon Brando (no papel de Marco Antônio), tem o Ran (1985) de Akira Kurosawa, inspirado em Rei Lear, tem Ricardo III — Um Ensaio (1996) e O Mercador de Veneza (2004), ambos com Al Pacino... A lista seria enorme.
Jane Austen (1775-1817)
Morta aos 41 anos, a escritora inglesa deixou apenas seis romances (dois deles póstumos) e ainda não alcançou o patamar de cem versões para cinema ou TV. Mas Jane Austen tem lugar praticamente cativo na cultura pop. Neste 2020, por exemplo, estreou a comédia romântica Emma, dirigida por Autumn de Wilde e estrelada por Ana Taylor-Joy; no ano passado, houve uma minissérie baseada no incompleto Sandition; e, em 2016, chegou às telas o bizarro Orgulho e Preconceito e Zumbis.
Uma das adaptações mais populares é As Patricinhas de Beverly Hills (1995), de Amy Heckerling, que modernizou a história de Emma, revelou a atriz Alicia Silverstone e gerou um culto entre os fãs. O melhor filme, curiosamente, foi lançado no mesmo ano de 1995: Razão e Sensibilidade, de Ang Lee. A trama é sobre duas irmãs, Marianne e Elinor Dashwood, uma guiada pelas emoções e a outra, pelo juízo. Depois de precisar deixar seu lar e partir para uma casa menor, por questões financeiras, as duas enfrentam desilusões amorosas, cada uma a seu modo. Valeu o Oscar de roteiro adaptado para Emma Thompson, que também concorreu ao prêmio de melhor atriz, no papel de Elinor. O longa-metragem disputou ainda as estatuetas de melhor filme, atriz coadjuvante (Kate Winslet), direção de fotografia, figurinos e trilha sonora original.
Austen voltou ao Oscar 10 anos depois, com Orgulho & Preconceito (2005), de Joe Wright, que concorreu nas categorias melhor atriz (Keira Knightley), direção de arte, figurinos e música. É a história da astuta e inteligente Elizabeth, que desperta a atenção do orgulhoso Mr. Darcy (Matthew Macfadyen). Lembra que falamos de cultura pop? Pois bem: Darcy é o nome com o qual a escritora Helen Fielding, em homenagem à romancista do século 18, batizou o personagem vivido por Colin Firth nos filmes da franquia O Diário de Bridget Jones (2001-2016).
Agatha Christie (1890-1976)
A Dama do Crime costuma fazer mais sucesso na TV, onde, dizem os fãs, as adaptações funcionam melhor, especialmente em seriados e minisséries (são mais de 30), que permitem adotar um ritmo mais semelhante ao da literatura de Agatha Christie. No cinema, costuma faltar alguma coisa na hora de transpor as histórias que convidam o leitor a ser um detetive, seguindo as pistas para descobrir quem era o assassino lá pelas últimas cinco páginas de um livro recheado de humor britânico e personagens atraentes — desde os detetives Hercule Poirot e Miss Marple até os aristocratas excêntricos, os mordomos empertigados e as criadas que ouvem conversas atrás das paredes.
O que não falta é tentativa. Já foram cerca de 40 longas-metragens para o cinema — o próximo a estrear é Morte no Nilo (2020), dirigido por Kenneth Branagh, o mesmo realizador de Assassinato no Expresso do Oriente (2017), que trilhou um bom caminho nas bilheterias: US$ 352,7 milhões. Como no filme anterior, Branagh trabalha atrás e à frente das câmeras, na pele de um Poirot igualmente bigodudo, mas nada calvo e bem menos roliço do que o dos livros. A trama é parecida, só que em vez de em um trem, é em um navio luxuoso que ocorre o assassinato a ser investigado pelo detetive. O elenco é estelar: Gal Gadot, Armie Hammer, Sophie Okonedo, Annette Bening, o comediante Russell Brand e Letitia Wright (a Shuri de Pantera Negra).
Essas duas histórias já haviam sido adaptadas nos anos 1970. O Assassinato no Expresso do Oriente (1974) de Sidney Lumet, valeu a Ingrid Bergman o Oscar de atriz coadjuvante e disputou os troféus de melhor ator (Albert Finney), roteiro adaptado, direção de fotografia, figurinos e música. O vestuário de Morte Sobre o Nilo (1978), dirigido por John Guillermin, também foi oscarizado.
Meu filme preferido é Testemunha de Acusação (1957), de Billy Wilder, que, na verdade, é a versão de uma peça de Agatha Christie. Cheia de reviravoltas, a trama de tribunal gira em torno do assassinato de uma viúva rica. O amante dela (Tyrone Power), casado, está sendo julgado, e sua única esperança é o testemunho da esposa (Marlene Dietrich). Foram seis indicações ao Oscar, incluindo melhor filme, diretor e ator (Charles Laughton, que faz o advogado de defesa). Ah, e vale indicar também uma homenagem à autora: Entre Facas e Segredos (2019), de Rian Johnson.
Philip K. Dick (1928-1982)
O escritor americano nunca viu as adaptações de sua obra para o cinema. Morreu três meses antes de estrear a primeira delas, Blade Runner — O Caçador de Androides (1982) (que em 2017 ganhou uma continuação, Blade Runner 2049). De lá para cá, os 36 romances e os mais de cem contos de Philip K. Dick renderam umas três dezenas de filmes, curtas e seriados — o mais recente deles foi O Homem do Castelo Alto (2015-2019), com as quatro temporadas disponíveis no Amazon Prime Video.
Nascido em Chicago, Dick morou grande parte de sua vida na Califórnia, onde ambientou a maioria de suas histórias. Mas o sol, as praias e as garotas de biquíni que caracterizam o Estado americano deram lugar às sombras, à chuva e a tipos como o do filme O Homem Duplo (2006), personagens dementes, viciados em drogas, em crise de identidade ou acuados por um aparato estatal — capaz de dominar corpos, controlar pensamentos e até ditar futuros.
Futuro: eis uma palavra-chave para entender o apreço do cinema pelo escritor que deu origem a Os Agentes do Destino (2011). Em suas obras, Dick inventou o porvir, fez previsões, deu asas para a imaginação dos cineastas. No 2019 de Blade Runner (dirigido por Ridley Scott), replicantes (robôs com aparência humana) trabalham em regime de semiescravidão em estações espaciais. Alguns se revoltam e tentam se infiltrar entre os homens. Os Estados Unidos estão tomados por imigrantes orientais. As pessoas se locomovem nas grandes cidades em carros voadores, em meio a edifícios com centenas de andares. Chove sem parar, e a poluição quase impede que se veja a luz do sol.
A ação de Minority Report (2002, de Steven Spielberg) se passa em 2054. A polícia tem a capacidade de zerar a criminalidade, ao prender futuros contraventores e assassinos antes que eles cometam seus crimes. O sucesso se deve a um trio de videntes mutantes, os precogs (pré-cognitivos). Todos os passos das pessoas são monitorados.
O Vingador do Futuro (1990, de Paul Verhoeven) adapta uma trama ambientada em 2084, quando a Terra mantém colônias de férias em Marte. Mas só para quem tem muito dinheiro. Trabalhadores assalariados precisam recorrer a implantes digitais que simulam viagens. No planeta colonizado, há um movimento revolucionário contra o empresário que tem o monopólio do oxigênio.
É assustador perceber como Dick acertou várias vezes.
Stephen King
Entre os escritores vivos, ninguém supera o mestre do suspense. Mais de 300 longas-metragens, curtas, seriados e telefilmes trazem nos créditos o nome do americano Stephen King, 73 anos, que já publicou cerca de 70 romances e novelas e 200 e tantos contos.
Hollywood fez de King um rei por pelo menos três fatores: a arte de expor seus personagens a provações e privações, o ecletismo (varia do horror à ficção científica, do drama ao suspense) e a habilidade em retratar os pequenos triunfos e as muitas tragédias do ser humano, nossos desejos e nossas obsessões.
O banho de sangue é uma imagem antológica da primeira adaptação, Carrie, a Estranha (1976), de Brian De Palma, thriller psicológico centrado no processo de amadurecimento de uma adolescente (Sissy Spacek), entre a sufocante convivência com a mãe, uma fanática religiosa, e o inferno que vive na escola — sofre bullying dos colegas vividos pelos então novatos John Travolta e Amy Irving.
Poucos anos depois, Stanley Kubrick assinaria um filme de que todo mundo gosta, menos o próprio King: O Iluminado (1980). Jack Nicholson encarna um aspirante a escritor que se muda temporariamente com a mulher (Shelley Duvall) e o filho pequeno, Danny, para atuar, durante o inverno, como zelador de um hotel imenso, isolado e vazio — ou não. A sequência, Doutor Sono (2019), é baseada na obra homônima do romancista.
A década de 1990 começou com o aflitivo Louca Obsessão e terminou com o tocante À Espera de um Milagre. No meio, tivemos o cultuado Um Sonho de Liberdade e o jogo de gato e rato de O Aprendiz.
It: A Coisa (2017), de Andy Muschietti, foi o mais recente sucesso — com US$ 700,3 milhões arrecadados, é a maior bilheteria de um filme de terror (a continuação, Capítulo Dois, ficou consideravelmente abaixo: US$ 473 milhões). A brutal cena de abertura, em que conhecemos o malicioso e assustador Pennywise (Bill Skarsgård), prenuncia o mundo de crianças e adolescentes negligenciados e marginalizados no qual nos arriscamos a entrar. O diretor argentino Andy Muschietti constrói e revela com paciência os dramas pessoais dos integrantes do Clube dos Otários, dramas que são mais perturbadores do que os monstros que aparecem em cena. É uma história que ecoa a de outro filme baseado em King, Conta Comigo (1986), de Rob Reiner, indicado ao Oscar de roteiro adaptado: quatro amigos de 12 anos saem à procura do corpo de um adolescente, em uma jornada que transformará suas vidas para sempre.