O que peças escritas há mais de quatro séculos podem nos dizer sobre as aflições e angústias deste mundo atual, de pandemia, políticos paternalistas e populistas, radicalizações, rupturas e conflitos geracionais? Quase tudo, desde que elas tenham sido escritas por um tal autor inglês chamado William Shakespeare (1564-1616).
A impressionante atualidade da obra do Bardo tem encantado estudiosos em todo o planeta. No Brasil, a Penguin acaba de lançar uma nova tradução de Rei Lear, peça muito provavelmente escrita por Shakespeare durante uma quarentena e considerada o ápice da produção dramática do autor inglês.
No catálogo da Penguin, Rei Lear se junta a outras traduções recentes de Júlio César, Romeu e Julieta (ambas traduzidas por José Francisco Botelho), Otelo e, claro, Hamlet, em edições caprichadas, turbinadas por ensaios críticos e notas. A L&PM também relançou este ano Macbeth, A Peça Escocesa, com tradução de Beatriz Viégas-Faria.
Há também no mercado, pela Nova Fronteira, o box que reúne as obras mais famosas, com organização da professora Liana de Camargo Leão e tradução da ensaísta Barbara Heliodora. Ou seja, farto material para quem quiser se aventurar.
– A leitura atenta das peças de Shakespeare pode se transformar em exercício de observação da ação humana e, se tivermos um pouco de sorte, em antídoto contra a simplificação da realidade, e a realidade atual parece que não acrescenta essa sorte – afirma o pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Lawrence Flores Pereira, responsável pela mais recente e caprichada tradução para o português de Rei Lear, peça escrita em 1605.
– Em Rei Lear, enfim, Shakespeare usou tudo o que sabia – diz Flores Pereira, que também traduziu Hamlet e Otelo para a Penguin e ainda assina ensaios críticos de fôlego nas edições.
Mas por que o conteúdo parece tão atual quatro séculos depois?
– Há um paralelo importante entre os processos de ruptura que marcaram a época de Shakespeare e a nossa. A perda de legitimidade das instituições, a radicalização das posições políticas, a transformação da matriz econômica, a desestabilização das premissas filosóficas que dão forma às práticas sociais e à ideia de bem comum são perceptíveis nesses dois momentos – diz o professor José Garcez Ghirardi, da FGV, que ministra o curso online Amor e Política em Shakespeare (informações nas redes do instituto We+Impact).
– O Bardo viveu tempos turbulentos, na política polarizada e na saúde pública assolada por pragas e epidemias. Primeira lição dele: escreveu sua tragédia mais excruciante, Rei Lear, hermeticamente fechado em casa, durante a peste bubônica que aterrorizou Londres no século 17. Aproveitou bem a quarentena – afirma o escritor Paulo Nogueira, crítico literário do Estadão e que também aborda a obra do Bardo em seus cursos de escrita e em seu canal no YouTube, o Ler É o Melhor Remédio.
Permanência e refinamento
O refinamento e as várias camadas das peças convidam ao pensamento e à reflexão, à conexões com o cenário atual. Como não reconhecer os tentáculos do populismo no discurso de Marco Antônio em Júlio César? A corrupção e os ardis que minam as instituições em Hamlet? O vale-tudo antiético em busca do poder em Macbeth?
Para quem tiver interesse de ir até o fim e se aprofundar, a experiência resultante dessa jornada pode, sim, representar elevação intelectual e até espiritual que, ao fim e ao cabo, nos ajuda a atravessar as crises.
– Shakespeare deixa em suas peças zonas obscuras reservadas à reflexão do seu público e dos seus intérpretes – diz Flores Pereira.
Segundo ele, a política está espalhada em toda a obra, mas sob o prisma da crítica implícita ao mundo patriarcal, dominado pelas figuras régias dos monarcas e, portanto, pré-iluminista e pré-democrático:
– Por um lado, estamos distantes desse mundo; por outro, o olhar realista (maquiavélico) e cético de Shakespeare para o modus operandi do poder, da ambição, das paixões do poder nos permite fazer ligações entre o tempo dele e o nosso.
– Shakespeare apresenta uma leitura poderosa das magníficas lições de Maquiavel. Os soberanos que não compreendem essa dinâmica constitutiva da política, como Duncan ou Lear, pagam um preço alto por sua ingenuidade. Por outro lado, vilões argutos que sabem manipular interesses e explorar fraquezas, como Macbeth, Edmund, Ricardo III ou Iago, são bem-sucedidos. Sua punição final, necessária para os padrões da época, não anula o fato de que sua estratégia lhes garantiu sucesso ao longo de quase toda a trama – diz Garcez.
Estudiosos acham provável que Shakespeare tenha usado a quarentena para escrever Rei Lear.
– Os surtos de peste bubônica eram relativamente frequentes no período. Isto ocorreu também em 1606, ano em que Lear foi encenado diante do Rei James I – aponta Garcez.
Aproveitar a quarentena da covid-19 para ler as peças do Bardo pode ser um remédio contra males da atualidade. "A pós-pandemia e o novo normal não nos transformarão em pessoas virtuosas e edificantes, mas podemos pelo menos ganhar uma autoconsciência mais realista", aconselha Nogueira.
As lições de política em Shakespeare
- Júlio César – Mostra o poder das palavras, da oratória na manipulação das massas e na criação dos "mitos". Alerta para o risco do populismo na política e da irracionalidade do sentimento de manada.
- Hamlet – Faz profunda reflexão sobre as relações entre poder e corrupção, poder e mentira. Trata ainda da mistura que os políticos até hoje promovem entre as instituições e os governos, sem entender a permanência de uma e a transitoriedade de outro. Ao final, deixa a mensagem de que a vingança pela vingança pode ser a ruína de qualquer reino.
- Macbeth – A ganância do protagonista ensina que chegar ao poder por meios escusos ou duvidosos torna o governante refém de seu passado e paranoico em relação a seus adversários, tendo sempre como único horizonte a manutenção desse poder conquistado, qualquer que seja o preço.
- Rei Lear – Ensina que conflitos familiares podem levar um soberano à ruína. Também mostra que governantes fracos não podem se livrar de suas responsabilidades e deveres com a divisão do poder.
- Ricardo III – Provavelmente a peça que mais trata das agruras da política. Na visão do dramaturgo, a personalidade de um rei é um dos definidores de seu destino, que é o de ser derrubado por um rebelado mais eficaz e inteligente.
Desafio da tradução atravessa gerações
As traduções para o português são centrais na compreensão da obra de William Shakespeare – afinal, as peças foram escritas na virada do século 16 para o 17 e, de lá para cá, a língua inglesa sofreu grandes transformações.
– Hamlet, por exemplo, fala como pensador, fala como divagador, como filho ressentido e como satirista endemoniado – diz Lawrence Flores Pereira, responsável pela tradução de três peças para a editora Penguin.
De Millôr Fernandes a Barbara Heliodora, muita gente de quilate alto já topou o desafio, incluindo Manuel Bandeira.
– Para a nova a geração de tradutores de Shakespeare, também é importante que se inclua na tradução a própria opulência lexical da língua portuguesa, o que muitas vezes faltou em antigas traduções que, por diversas razões métricas, eram obrigadas a pechinchar os termos. Tendo a buscar equivalência lexical, sintática, tonal na minha tradução – complementa Flores Pereira.