– O que é nothing em português? – pergunta o tradutor Elvio Funck, 80 anos, recostado em uma poltrona de sua casa em um tranquilo condomínio em Canela, na Serra, onde mora há cerca de 10 anos com a esposa.
– "Nada" – responde o repórter.
– Mas em determinados contextos significa a genitália feminina. E o que é spirit?
– "Espírito".
– Mas em determinados contextos é "pênis", ou "esperma".
Com seu método dialético, o professor aposentado de Literatura da UFRGS e da Unisinos explica à reportagem as nuanças do inglês de William Shakespeare (1564 – 1616). Funck não apenas mostra como a obra do Bardo está repleta de uma "sutil pornografia" como, também, defende a importância das notas de rodapé nas traduções para captar esse tipo de duplo sentido e explicar o contexto. Surpreende-se que muitas edições brasileiras não se valham desse recurso, que ele emprega nas suas. Desde 2006, está publicando pela editora Movimento, em parceria com a editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, o teatro completo de Shakespeare, um volume para cada peça. Há muitos tradutores do autor no Brasil, mas o projeto de verter toda a obra tem cabido a uma seleta guilda que inclui Carlos Alberto Nunes, a dupla F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes e, mais recentemente, Barbara Heliodora.
No Rio Grande do Sul, Funck é o mais experiente de uma turma de tradutores do grande dramaturgo britânico que inclui Lawrence Flores Pereira, Beatriz Viégas-Faria (ambos foram seus alunos) e José Francisco Botelho. Em seu reduto na serra gaúcha, Funck é uma espécie de Quixote shakespeariano, publicando por meio de uma parceria entre editoras de fora do eixo Rio-São Paulo. Os livros, no entanto, têm distribuição nacional. Embora a missão a que se lançou seja ambiciosa, garante que suas traduções são "de sangue doce". O projeto, admite o tradutor, tem como objetivo principal ocupar o tempo na sua aposentadoria.
– Shakespeare é um autor muito falado, mas pouco lido de fato – lamenta. – É uma obra que tem que ser lida com certo vagar. Ninguém tem paciência hoje para as notas de pé de página, mas não se consegue entender Shakespeare sem estas.
Para o veterano, não adianta conhecer apenas uma peça; é preciso ler toda a obra para se apaixonar. Por isso, ele procura deixar o autor "mais claro" aos leitores. Além das abundantes notas explicativas, suas versões são sempre em prosa.
– Não as faço em poesia porque nem sou poeta. A tradução em prosa é sempre mais clara – defende, embora admire, como leitor, algumas versões em poesia.
Tudo começou nos anos 1960
A paixão pelo Bardo começou nos anos 1960, durante uma temporada de três meses na Escócia, mas os primeiros esforços de tradução surgiram no retorno de seu doutorado, nos Estados Unidos, em 1980. Naquela época, Funck ofereceu a seus alunos de Literatura versões interlineares (que alternam uma linha em inglês com uma em português). A primeira foi Macbeth, depois completamente revista para a primeira edição em livro. Hoje, tem lançadas 10 traduções. Ainda em 2016, que marca os 400 anos de morte do Bardo, devem chegar às livrarias Júlio César e Coriolano. Para o início de 2017, está prometida Antônio e Cleópatra.
Funck calcula que já tem prontas 34 traduções das 38 que pretende publicar, mas muitas ainda estão sem a sua revisão – que constitui uma parte demorada do trabalho. Raramente um tradutor pode dizer que realmente verteu a obra completa do Bardo, porque os estudiosos constantemente revisam a questão da autoria. A nova edição da Oxford, por exemplo, indica que ele escreveu 44 peças. No Brasil, Funck está na vanguarda. Publicou traduções de duas peças que entraram para o cânone shakespeariano apenas no século 20: Eduardo III e Os dois nobres parentes. Mas não tem certeza se verterá Sir Thomas More e Cardenio. Há, ainda, quem questione se foi realmente Shakespeare quem escreveu todas as suas peças, mas, na opinião do professor, esse debate é "absolutamente desimportante":
– Não ligo para isso, não perco tempo. Quem escreveu a Odisseia? A Ilíada? Ninguém sabe. Mas aí estão as obras.