Por Marcus de Martini
Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tradutor de “Poesia Religiosa de John Donne” (UFSC)
Para a grande maioria dos leitores, Shakespeare é lembrado, sobretudo, como o autor de Hamlet, com seu solilóquio “To be or not to be”, já parafraseado e parodiado de todas as formas possíveis (basta lembrar o “Tupi or not tupi”, de Oswald de Andrade). No entanto, para os mais familiarizados com sua extensa obra, a maior peça do bardo inglês é King Lear, que agora sai em nova tradução de Lawrence Flores Pereira, professor de literatura inglesa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Estamos diante de uma retradução, pois Rei Lear já foi traduzida para a língua portuguesa outras vezes, inclusive por intelectuais de renome, como Millôr Fernandes, Barbara Heliodora e Carlos Alberto Nunes, em edições ainda disponíveis no mercado editorial brasileiro.
A nova tradução se diferencia das anteriores por uma série de motivos. O volume é inovador em vários sentidos, um deles sendo os próprios comentários do tradutor, que explica os critérios que seguiu. Se a antiga tradução de Millôr Fernandes tinha uma fluência nova, “amigável” para os leitores, ressentia-se de uma variação estilística que desse conta das modulações do texto-base. O elemento poético, ausente na versão de Millôr, mas poderoso em Rei Lear – reaparece na nova versão revitalizado pela versificação poderosa do tradutor. Por outro lado, a tradução de Lawrence F. Pereira traz aquilo que Berman chama de “poeticidade” para o primeiro plano: percebe-se linha a linha o trabalho de detalhe com as peculiaridades estilísticas do original, o esforço para transportá-las para o português, que sai renovado. Essas são discussões centrais na tradução de textos poéticos antigos, embora nem sempre o público as perceba.
Porém, se Lawrence usou o verso, não utilizou o verso mais tradicional, o decassílabo. Traduziu o pentâmetro iâmbico inglês (um verso com cinco pés de duas sílabas poéticas de acentuação alternada cada um, uma fraca e outra forte) usando o dodecassílabo, mas com uma ritmação impressionantemente variável e rica na qual se ouve tanto a coloquialidade como a cadência dramática. Sua escolha é audaciosa – e nem sempre praticada pelos tradutores. Ela consolida uma prática que já exercitara em suas traduções anteriores de Shakespeare e que se mostrou eficaz e bem sucedida.
Lawrence comenta em suas notas de tradução que a elasticidade do dodecassílabo permite alternâncias de estilo entre as falas dos personagens sem forçar a supressão de vocábulos, evitando também o efeito de compressão e o esquematismo de outras formas de verso e promovendo maior coloquialidade. Até onde há opacidade em Shakespeare, Lawrence a traduz – sem domesticá-la. Essa obscuridade fazia parte do idioleto literário de Shakespeare e foi responsável também pelo impacto que sua obra sempre teve, com suas impressionantes alternâncias entre o sublime e o baixo que chocaram os críticos “classicistas”. Basta que o leitor atente para as falas de Lear e de Pobre Tom, como ainda do fantástico Bobo, precedidas muitas vezes de solenidade trágica. Tudo isso ocorre em frações de segundo em Shakespeare.
Nas partes em prosa, em particular nas cômicas, a tradução traz inovações consideráveis: um aporte da linguagem popular na qual se vê a experiência do tradutor com a tradição do verso de cordel e do repente nordestino que ele adapta sutilmente para as vocalizações cômicas do bobo e de Pobre Tom .
A edição vem acompanhada ainda de uma introdução, que é um extenso ensaio de crítica literária elaborado pelo tradutor em coautoria com Kathrin Holzermayr Rosenfield. Trata-se de um texto erudito, que se equilibra entre duas demandas distintas: por um lado, a de relacionar a peça com seu contexto histórico e de ideias e, por outro, a de aproximar um texto de mais de 400 anos do leitor contemporâneo. O leitor é informado acerca das fontes da peça, do seu contexto histórico, como também das questões jurídicas, políticas e teológicas que, por vezes, nos passam despercebidas. Essas questões seriam compreendidas por um espectador da época, como a polêmica abdicação do rei e a consequente divisão do reino entre suas três filhas. Ao mesmo tempo, temas-motrizes da peça, como a relação entre o pai e suas filhas, e a correspondente inversão de papéis entre eles, o feminino e o masculino, enfim, são apresentados por meio de aproximações com questões que seriam apenas introduzidas séculos depois pela psicologia moderna e pela psicanálise – mas que Shakespeare em grande parte ordenou antes de sua conceptualização as teorias modernas.
Além de uma introdução, há no volume uma “Nota sobre o texto”, que esclarece a opção do tradutor pela edição conflacionada da peça, uma vez que o texto apresenta variantes, fato este, aliás, raramente mencionado nas traduções de Shakespeare no Brasil, levando o leitor a crer que haja sempre uma versão canônica das peças. Mais interessante ainda é a marcação da maioria das variantes entre as versões na própria tradução, o que permite ao leitor perceber algumas nuances entre elas.
Seguindo o texto da peça, há um extenso corpo de notas que ora fornece indicações bibliográficas, ora introduz comentários elucidativos sobre determinadas passagens, bem como revela implicações de sentido nas opções tomadas pelo tradutor.
A tradução de Rei Lear, de Lawrence Flores Pereira, não é apenas “mais uma tradução de Shakespeare”, mas um ponto de inflexão pelo qual todo novo tradutor da peça terá de responder de alguma forma. Não apenas o leitor interessado terá em mãos uma tradução de excelência para vislumbrar o que fez de Shakespeare o que ele é, mas o próprio estudioso da peça terá uma fonte atualizada e abrangente para estudo. Que mais traduções como esta venham no futuro.