Uma característica da obra de Shakespeare é a impossibilidade de se afirmar que determinada peça é sobre isso ou aquilo. Cada uma trata de inúmeros tópicos ao mesmo tempo. Talvez seja um pouco assim com qualquer trabalho artístico, mas no caso do Bardo de Stratford-upon-Avon a multiplicidade de temas é potencializada pela enorme fortuna crítica. Poucos autores tiveram tantos exegetas quanto ele.
Otelo, que volta às livrarias brasileiras hoje em tradução inédita de Lawrence Flores Pereira pela Companhia das Letras, é sem dúvida uma peça sobre o ciúme, sentimento que o desleal Iago, em célebre definição, chama de "o monstro de olhos verdes". Mas é também sobre a questão da raça, afinal, seu protagonista é um mouro estereotipado por (quem mais?) Iago. E também sobre a tragédia de uma mulher, Desdêmona, acusada injustamente de infidelidade.
Outras camadas de leitura podem ser acrescentadas, e Pereira tem ciência dessa infinidade. Mas está à altura da empreitada. Sua versão de Hamlet, pela mesma editora, ganhou o Prêmio Jabuti de tradução em 2016, e ele tem outras obras de Shakespeare na fila para traduzir. A edição agora disponível nas lojas inclui introdução e notas suas, além de um ensaio de W. H. Auden.
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Em entrevista a ZH, o tradutor explica os desafios de verter Otelo:
– Há na peça a linguagem demoníaca de Iago, assim como a linguagem "elevada" e musical de Otelo, poemas satíricos rimados, prosa, canções femininas, assim como muita linguagem metafórica, carregada de fantasmas sexuais impressionantes. Não há uma linha que não tenha terríveis insinuações, e o tradutor deve deixá-las viver como insinuações, sem carregar demais as tintas. A teatralidade é importante.
Questões formais à parte, Pereira acredita que Shakespeare precede Freud "em séculos" ao apresentar "a anatomia da imaginação, seus processos, o momento da infusão de suspeitas". Sua atualidade é constantemente renovada. Enquanto o julgamento de O.J. Simpson volta aos holofotes em documentário e série ficcional, Otelo oferece insights preciosos sobre a violência dos homens contra as mulheres (curiosidade: a Nobel de Literatura Toni Morrison reescreveu a história do Mouro de Veneza em uma perspectiva feminina na peça Desdemona, estreada em 2011 em Viena).
Pereira atesta:
– A dupla visão do homem em relação ao feminino, que oscila entre a imagem de intensa pureza e virtude e a imagem da prostituta, é magistralmente apresentada por Shakespeare por meio das imaginações de Iago e de Otelo, imaginações que tornam a peça sufocante.
Shakespeare e as minorias
Na trama ambientada em Veneza, Otelo é um general que conquista Desdêmona apesar da oposição do pai dela, que o acusa de tê-la enfeitiçado. Em uma missão no Chipre, o personagem-título tem de lutar também contra o próprio ciúme, instilado pelo alferes Iago. O tratamento dispensado por Shakespeare a minorias como negros, mulheres, homossexuais e judeus tem sido tema de exaltados debates acadêmicos. Pereira acredita que o autor "contribuiu enormemente para entender as fantasias e preconceitos humanos ao desenvolver um perspectivismo dramático que ultrapassava a noção de bem e mal". Explica ele:
– Otelo traz linguagem racial, mas não dita por Shakespeare, e sim por Iago, um personagem que é claramente pérfido. Agora, Shakespeare nunca foi um paladino da boa consciência, em parte porque a época veria com ceticismo qualquer esperança excessiva na capacidade humana de fazer o bem, e Shakespeare mostrou várias vezes o que pode às vezes estar por detrás de uma aparência de virtude moral.
O tradutor pontua que a relevância da questão racial na peça é "imensa", mas defende que precisa ser contextualizada.
– Shakespeare estava ciente de estar trabalhando com algo parecido com o que hoje chamamos de alteridade, que, no caso, era, ao mesmo tempo, nacional, religiosa e racial – argumenta Pereira. – O racismo, contudo, está sobretudo nos discursos de Iago que claramente sexualizam e animalizam Otelo, como mouro, estrangeiro e como negro, mas, obviamente, Shakespeare, como autor, não subscreve essa visão, apenas a apresenta.
Por e-mail, Lawrence Flores Pereira respondeu outras perguntas. Confira:
Desdêmona tem um fim trágico, similar ao de outras mulheres inocentes na literatura e na dramaturgia, o que poderia potencializar uma leitura feminista. Que novas interpretações podemos elaborar a respeito da função dela na peça?
É uma questão instigante se perguntar se Shakespeare jamais criou uma personagem realmente feminina. O certo, contudo, é que foi preciso na descrição do destino de muitas mulheres que, ao mostrarem sua liberdade e iniciativa, acabaram nutrindo a suspeita daqueles que foram os beneficiários de suas qualidades e ousadias. Desdêmona é corajosa no início da peça. Contra o desejo paterno, casa-se com um estrangeiro, ama-o por sua vida, vislumbra nele uma humanidade que muitos em Veneza não reconhecem. Mas sua ousadia, que ela chama de "violação" (violência), se torna na mente de Otelo, envenenado pelas sugestões de Iago, um sinal de sua "liberdade-libertinagem". Por outro lado, há algo notável nesta peça: Emília, que, no final da peça, faz uma defesa que podemos chamar, sem exagero e anacronismo, de protofeminista. Ela não defende apenas a pureza das mulheres, mas as defende lembrando que elas são humanas, desejam como os homens, possuem um corpo etc. Ao fazer isso, ela soa ao mesmo tempo "menos nobre" do que Desdêmona, mas certamente mais precisa. Ela reivindica um tratamento igual ao dos homens. Também as mulheres desejam outros homens, como os próprios homens desejam outras mulheres. A comparação mexia com os temores masculinos da época.
Em Otelo, o que Shakespeare nos ensina sobre o ciúme?
Ele nos ensina como o processo de contaminação imaginária do ciúme acontece, por meio de sugestões, detalhes, conexões sutis que formam uma longa narrativa até tornar a imaginação algo real, mas também, de modo mais sutil, oferece algumas pistas que ligam a sensação de vulnerabilidade do ciúme com a perda da mãe. Otelo deixou sua mãe para enfrentar uma vida nos campos de batalha. Desdêmona encarna o retorno imaginário dessa mãe. Mas Shakespeare tinha um objetivo maior: as deficiências da imaginação e da interpretação humana que fazem com que acreditemos nos nossos próprios fantasmas ou crenças. Num estudo célebre, Eisaman Maus mostrou como Shakespeare utiliza a linguagem do direito para mostrar o erro indutivo dos pensamentos de Otelo.
Um dos ecos mais conhecidos de Otelo no Brasil é sua influência em Dom Casmurro. Como você avalia essa referência na obra de Machado de Assis?
A influência é grande. Bentinho vai ao teatro para assistir Otelo e sai de lá convencido de que, se Otelo matou sua mulher, que era inocente, ele então tinha razões de sobra para matar a sua mulher que, segundo ele, não era inocente. Há uma falha impressionante nesse raciocínio, que podemos encontrar até em críticos como Jan Kott, que chegou ao ponto de dizer, sem nenhuma vergonha, que Desdêmona, embora inocente, era in potentia uma prostituta – Jan Kott não havia progredido muito além do próprio Otelo. O interessante do trabalho de Machado é nos mostrar como a interpretação de Otelo pode ser alterada pelas nossas próprias percepções masculinas/femininas sob o efeito do ciúme. Mas há um eterno equívoco nesta história e ele se revela na questão comezinha da antiga crítica sobre se Capitu traiu ou não traiu... que perdurou por um século entre nós.
Qual foi a versão mais interessante de Otelo que você já viu ser representada no palco ou no cinema?
Para o cinema, gosto da versão de Oliver Parker e acho que Lawrence Fishburne faz um excelente Otelo. A reconstituição do encontro de Otelo com a Signoria é magistral. Há cortes, claro, que revelam a dificuldade dos diretores de incorporar o grotesco de certas situações. Mas isso foi sempre um problema desde o século 17, quando o classicismo buscou atenuar as cenas indecorosas que diminuíam a grandeza de Otelo.