Um deles é um experiente professor de Literatura da Universidade Federal de Santa Maria com pós-doutorado nos Estados Unidos; o outro é um jovem escritor, jornalista e doutorando em Literatura. O santa-mariense Lawrence Flores Pereira, 51, e o bajeense José Francisco Botelho, 36, são de gerações diferentes, mas estão unidos no esforço de fazer Shakespeare falar português novamente, em traduções que começaram a ser publicadas no segundo semestre de 2015 pela Companhia das Letras.
Como qualquer tradutor do Bardo no século 21, ambos têm um desafio e tanto: reapresentar o maior dramaturgo de todos os tempos a leitores que já têm diversas edições à sua disposição. A versão de Barbara Heliodora acaba de ser republicada pela Nova Aguilar, agora em três volumes (antes, eram dois) e projeto gráfico revisto. A L&PM tem em seu catálogo versões de Millôr Fernandes e Beatriz Viégas-Faria. Isso para citar apenas algumas atualmente disponíveis. Mas se a obra de Shakespeare é um poema ilimitado, para lembrar a maneira como Harold Bloom se referiu a Hamlet, o trabalho dos tradutores nunca acaba: sempre há novos sentidos, soluções poéticas e dramas humanos a serem revelados. Ainda mais neste 2016, quando são lembrados os 400 anos de morte do Bardo.
As traduções de Pereira e Botelho se caracterizam pelo equilíbrio entre poesia e entendimento, o que significa que podem ser apreciadas pelos leitores e também utilizadas por atores em encenações. Pode parecer óbvio, mas não é. Traduções excessivamente apegadas ao rigor formal não se prestam a espetáculos teatrais por serem de difícil apreensão para os espectadores quando faladas pelos atores.
– Com Botelho, tenho uma proximidade poética rara de encontrar – afirma Pereira, sobre o colega. – Nós dois recebemos o impacto da oralidade poética. Ele na oralidade do repente do pampa; eu em minhas pesquisas com a poesia oral do Nordeste. Essa relação com a oralidade foi fundamental para minha formação de tradutor.
Pereira defende que a fluência é "essencial" em Shakespeare. Não necessariamente para facilitar a leitura do público na atualidade, e sim porque o próprio Bardo era, para seus contemporâneos, mais fluido do que algumas traduções podem dar a entender. Quando o Hamlet de Pereira foi encenado por Luciano Alabarse, em 2006, o tradutor chegou a ser questionado por espectadores se havia realizado alguma atualização:
– Sempre buscando a fidelidade, fiquei surpreso com essa pergunta, mas entendi, na verdade, que isso vinha de uma certa ideia canonizada e sublimada de Shakespeare e do nosso hábito de confundir complexidade com obscuridade. Não acredito que o uso do verso atente contra a fluência do texto. Acho, sim, que, quando isso acontece, faltou habilidade ao tradutor.
Na mesma toada, Botelho declara que um de seus projetos estéticos é traduzir Shakespeare "sem lhe tirar a essência de verso, mas tornando-o impactante, envolvente e fluido para o leitor brasileiro hoje". Há vários métodos para alcançar esse objetivo. Em suas traduções, ele costuma expressar em três ou quatro linhas algo que o autor escreveu em duas. Também recorre a diferentes tipos de métrica para conferir uma sensação de musicalidade, recurso que mira o aproveitamento no palco.
– De fato, minhas traduções pretendem ser mais acessíveis, mas mantendo a força poética, a melodia, o ritmo, a estranheza – diz Botelho.
Pereira publicou sua versão de Hamlet em 2015 e está na fase final de Otelo, que chegará às livrarias em fevereiro de 2017. Depois, traduzirá Rei Lear, Macbeth, Ricardo II, Ricardo III e Sonho de uma noite de verão. Botelho lançou Romeu e Julieta em setembro e agora está vertendo Júlio César e os sonetos. Na sequência, vai se debruçar sobre Antônio e Cleópatra, Coriolano, Tito Andrônico, A tempestade, Henrique IV (partes 1 e 2) e Henrique V.
Uma tradição que remete a Erico verissimo e Mario Quintana
Mas ninguém nasce tradutor de Shakespeare; é preciso se tornar um. Pereira acredita que a aptidão para o ofício vem desde cedo. Ele tinha a ideia de traduzir antes os sonetos, mas começou a conceber as tragédias no final do mestrado:
– Ao contrário do que ocorre na tradução técnica, a tradução de poesia se origina de uma aptidão rítmica e sonora, a mesma que beneficia músicos e poetas populares, ainda que a experiência, a prática e a experimentação a melhorem. Mas, sendo Shakespeare um autor na primeira modernidade, sua linguagem é diferente. Esse aprendizado é demorado e exige paciência.
Botelho se submeteu a um processo de iniciação, ainda na época em que cursava a faculdade de Jornalismo, isolando-se do mundo durante as férias até conseguir ler as peças com fluência. Shakespeare foi o primeiro autor que tentou traduzir, mas o trabalho ficou sério, nos últimos anos, depois que se aventurou pelo inglês medieval de Chaucer (sua versão de Contos da Cantuária saiu em 2013 pela Companhia das Letras). Sobre Shakespeare, Botelho observa:
– Foi preciso adquirir o necessário conhecimento filológico, não só na língua inglesa, mas também na portuguesa. E, além disso, pelo menos no tipo de recriação tradutória a que me dedico, é preciso adquirir não apenas o conhecimento, mas o traquejo da poesia métrica.
Também digno de nota é o fato de Pereira e Botelho integrarem uma efervescente presença shakespeariana no Rio Grande do Sul, ao lado, hoje, de tradutores como Elvio Funck e Beatriz Viégas-Faria.
– E temos que acrescentar: não apenas vários tradutores, mas tradutores excelentes. Um mistério total para mim também – surpreende-se Pereira, que se diz admirador dos antecessores.
Botelho, no entanto, tem um palpite:
– Creio que isso se relaciona com a tradição tradutória do Rio Grande do Sul, que é muito forte. A antiga Livraria do Globo investiu muito em tradução entre as décadas de 1930 e 50. Erico Verissimo, Mario Quintana e muitos outros autores fizeram grandes e reconhecidas traduções para a editora. Creio que isso tenha deixado um legado cultural muito importante que ainda dá frutos no Estado, embora, atualmente, a maior parte das traduções esteja sendo realizada para editoras de São Paulo ou sediadas por lá.
Trecho de "Hamlet"
Tradução de Lawrence Flores Pereira
HAMLET Ser ou não ser: eis a questão:
Saber se é mais nobre na mente suportar
As pedradas e flechas da fortuna atroz
Ou tomar armas contra as vagas de aflições
E, ao afrontá-las, dar-lhes fim. Morrer, dormir.
Só isso. E dizer que com o sono damos fim
À nossa angústia e aos mil assaltos naturais
Que a carne herdou: sim, eis uma consumação
Que cumpre ardentemente ansiar. Morrer, dormir;
Dormir, talvez sonhar - sim, aí está o entrave:
Pois no sono da morte os sonhos que virão,
Depois de repudiado o vórtice mortal,
Nos forçam a refletir. E é bem esse reparo
Que dá à calamidade uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e o esgar do mundo,
A afronta do opressor e o insulto do soberbo,
O baque do amor ferido, o lento da lei
A insolência do mando e este bruto achincalhe
Que o mérito paciente recebe do inepto,
Se pudesse ele próprio quitar sua quietude
Com um reles punhal. Quem suportaria fardos,
Gemendo e suando numa vida de fadigas,
Senão porque o terror ante algo após a morte,
A terra ignota de cujos confins nenhum
Viajante retornou, nos congela a vontade
E nos força a aguentar os males que já temos
Em vez de ir pra outros que desconhecemos.
E assim a consciência faz todos nós covardes;
E assim a cor nativa da resolução
Ganha o tom doentio do pensamento pálido
E empreitadas de grande vigor e valor,
Com tais ponderações, suas águas ficam turvas,
E perdem o nome de ação. Mas silêncio agora,
A bela Ofélia. Ninfa, em tuas orações sejam
Lembrados meus pecados.
Trecho de "Romeu e Julieta"
Tradução de José Francisco Botelho
ROMEU (para Julieta, depois de lhe tocar a mão)
Se profano este altar, assumo o meu pecado;
Mas pequei gentilmente, ao estender a mão.
Meus lábios, palmeirins de aspecto encabulado,
Hão de apagar, num beijo, a rude intromissão.
JULIETA Ofendes tua mão, honrado peregrino;
Mas ela foi correta e agiu com devoção.
Um toque é suficiente ao santo e ao paladino:
Beijam-se os palmeirins tocando mão e mão.
ROMEU As santas não têm boca? – indaga o palmeirim.
JULIETA Têm lábios, peregrino, e os usam para orar.
ROMEU Que a boca imite as mãos, buscando o mesmo fim:
Encostem-se, gentis, os lábios a rezar.
JULIETA Um santo não se move enquanto aceita o voto.
ROMEU Parada, então, recebe a oferta de um devoto.
(Ele a beija.)
Dos meus lábios lavei, nos teus, o meu pecado.
JULIETA Tenho um pecado, então, nos lábios – e o cometo.
ROMEU Passei-te a minha mancha? Ah, tolo indelicado!
Devolve meu pecado.
(Ele a beija.)
JULIETA O teu beijo é um soneto.
AMA Madame, a sua mãe quer vê-la agora.
ROMEU A mãe dela – quem é?
AMA Por Deus, rapaz!
A mãe dela é a dona desta casa
E é uma dama prudente e virtuosa.
Amamentei a jovem senhorita
Com quem vossa mercê andou falando.
Homem de sorte é quem casar com ela!
ROMEU A moça é Capuleto? Ah, minha vida,
Agora estás na conta do inimigo!