O final dos anos noventa foi movimentado para Jane Austen (1775—1817). Mais de dois séculos depois de seu nascimento, a escritora britânica se tornava uma "rockstar" da literatura graças a inúmeras adaptações cinematográficas. Em 24 de setembro de 1995, que estreou nas telas o precursor de todo esse sucesso: a minissérie Orgulho e Preconceito, escrita por Andrew Davies para a BBC.
Austen já tinha mostrado sua força com o moderno As Patricinhas de Beverly Hills, livremente inspirado em Emma, lançado em julho daquele ano, e voltaria a encantar o público a partir de dezembro com o premiado Razão e Sensibilidade, cujo roteiro rendeu um Oscar a Emma Thompson. Ainda assim, seria da adaptação de Orgulho e Preconceito o título de fenômeno cultural, graças à popularidade que trouxe ao mais elogiado livro da escritora.
Colin Firth ascendeu ao posto de galã mundial graças ao papel de Mr. Darcy, o orgulhoso porém, no final das contas, nada odiável mocinho da história. Já Jennifer Ehle tomou o lugar de Elizabeth Bennet, a mocinha de língua afiada que não aceita casar apenas por dinheiro na Inglaterra do século 18. Juntos, eles traçam uma jornada que se tornou clichê nas comédias românticas: do ódio ao amor.
O final feliz, no entanto, não resume de forma alguma as intenções de Jane Austen.
— Não podemos negar que Austen tenha escrito histórias de amor, ou “courtship novels”, mas essa é uma estrutura comum em romances do período, seguida até hoje, e não é nem de longe o aspecto mais importante nas obras dela — destaca Maria Clara Biajoli, professora de literatura inglesa da Universidade Federal de Alfenas (MG).
Com doutorado em Teoria e História Literária pela Unicamp com a tese "Orgulho e Preconceito no Século 21: a Austenmania e a Fantasia do Final Feliz", a pesquisadora ressalta que a "representação afiada da sociedade" apresentada por Austen é deixada de lado em muitas adaptações, enquanto o público suspira "com um Darcy de camisa molhada".
A tradutora Julia Romeu, que assina a versão mais recente de Emma da Penguin-Companhia (lançada em formato digital em maio; a versão física está prevista para 2021), concorda que a obra de Jane tem muitas camadas além do apelo romântico. No passado, ela também traduziu A Abadia de Northanger (Best Bolso, 2011) e A Juvenília de Jane Austen e Charlotte Brontë (Penguin Companhia, 2014).
— Na obra de Austen há tanto comédia quanto romance. Há também feminismo, crítica social, ironia. Jane Austen é múltipla, é polifônica, permite diversas interpretações. Não é à toa que se mostra uma fonte inesgotável de adaptações, continuações e reinvenções.
Maria Clara ainda defende que a utilização de uma "tela de fundo" para tramas mais complexas é normal, embora outros autores não recebam o mesmo tratamento de Austen.
— Essa mesma estrutura já existia em comédias do teatro, como em Shakespeare, porém ninguém fala que as peças de Shakespeare, por mais felizes que sejam seus finais, contém apenas aquilo, o amor. Austen sofre com isso por ser mulher.
"Austenmania"
Doces ou não, as adaptações de Austen garantiram um fã-clube admirável à escritora bicentenária. Afinal, grandes produções como o filme Orgulho e Preconceito (2005), de Joe Wright, com Keira Knightley no papel principal, garantiram uma audiência que poucas obras literárias podem sonhar conquistar.
Por aqui, a Jane Austen Sociedade do Brasil (JASBRA) tem suas raízes justamente no ano de 2005, quando vários futuros membros do grupo se conheceram na comunidade do Orkut de Orgulho e Preconceito. Adriana Zardini, uma das idealizadoras da Sociedade, comenta que não é um movimento apenas local:
— O fandom digital de Austen é enorme e está interligado ao redor do mundo, por meio das Jane Austen Societies e grupos de fãs. Há alguns meses, a Jane Austen Society (UK) celebrou 80 anos de existência — destaca.
Já Raquel Sallaberry Brião, responsável pelo site Jane Austen em Português, aponta ainda que a "Austenmania" pode ter ganhado força com as adaptações cinematográficas, mas que em seguida o movimento transformou o mercado editorial:
— No Brasil, várias editoras começaram a traduzir Austen diante desse aumento de interesse pelos romances, como exemplo, a L&PM que em 2009 respondeu a um apelo do meu blog e publicou a obra completa e também a Juvenília. Outras editoras que já publicavam Austen passaram a republicar.
Este movimento, inclusive, é o que leva muitos defensores dos livros serem favoráveis a adaptações, releituras, continuações, mashups e infinitas possibilidades. Nos últimos anos, não faltam exemplos de derivações inusitadas das obras de Austen: Orgulho e Preconceito e Zumbis chegou aos cinemas em 2016, adaptado do livro de Seth Grahame-Smith; Noiva e Preconceito reconta a saga de Elizabeth e Darcy em Bollywood; e a websérie The Lizzie Bennet Diaries coloca a protagonista de O&P como youtuber, para citar apenas projetos que alcançaram certa popularidade nos últimos anos.
A tradutora Julia Romeu está no time que defende essas inúmeras possibilidades:
— Depois de ver um filme, uma série, uma websérie, é comum que as pessoas tenham interesse em ler os livros e acabem se apaixonando por eles. Assim, eu acho que as adaptações são muito importantes para divulgar e dar vitalidade à obra da Jane Austen.
Como neste ano, em que o Selo Via Leitura, do Grupo Editorial Edipro, lançou edições luxuosas de capa dura de Orgulho e Preconceito, Persuasão e Razão e Sensibilidade. A publisher da casa, Maíra Lot Micales, também ressalta a complexidade das tramas para além dos percalços amorosos das heroínas.
— Essas histórias, em sua profundidade, tratam do cerceamento da mulher em uma sociedade que lhe restringia a educação e a autonomia econômica, por exemplo. Algo que extrapola sua época e localização geográfica.
As leitoras não deixam de concordar com Maíra. Adriana declara que, mesmo depois de 200 anos, os livros da escritora seguem atuais:
— As temáticas abordadas por Jane Austen ultrapassam o que consideramos romance e faz questionamentos como posição da mulher na sociedade, direitos de igualdade, cultura, costumes e até mesmo fortunas estabelecidas em cima do tráfico negreiro.
Já Raquel frisa a forma como a escritora é capaz de retratar seres humanos com perspicaz:
— Quando a lemos temos certeza que conhecemos pelo menos uma meia dúzia de seus personagens. Talvez alguns até morem conosco.
Para Maria Clara, a melhor forma de aproveitar tal genialidade original de Austen é buscando deixar os rótulos criados por Hollywood e outras adaptações para trás — alguém poderia afirmar, até, que o é melhor ler sem preconceitos:
— Eu costumo dizer para os meus alunos que para ler Austen é preciso ligar o botão, o detector de ironia. E daí você vê o livro se transformar em outra coisa diante dos seus olhos.