A história se passa em 2014, mas desde seu lançamento no Festival de Sundance (EUA), no dia 21 de janeiro de 2022, Klondike vem ganhando assustadora atualidade. Não à toa, recebeu o subtítulo A Guerra na Ucrânia no Brasil, onde estreia nesta quinta-feira (5). Em Porto Alegre, o premiado filme escrito, dirigido e editado por Maryna Er Gorbach pode ser visto com exclusividade no Cine Grand Café.
Ucraniana radicada na Turquia, Gorbach disse que escolheu esse título para abrir os olhos dos Estados Unidos à guerra que se desenhava no Leste Europeu. Klondike é o nome da região na fronteira do Canadá com o Estado do Alasca que foi palco da mais famosa corrida do ouro do século 19. A cineasta quis estabelecer um paralelo com Donbass, na Ucrânia, rica área industrial e produtora de carvão nos tempos de domínio da União Soviética, hoje um dos principais cenários do conflito armado.
Não há nostalgia: Gorbach não é separatista, condena a invasão de seu país pela Rússia e acha que o Ocidente demorou muitos anos para aplicar sanções. Ela inclusive assinou com outros seis diretores ucranianos um manifesto pedindo o boicote à produção cultural atual da Rússia.
— Não se trata de cancelamento da cultura russa. Pedimos uma pausa. Quando artistas russos dizem que não têm nada a ver com a guerra, isso é utopia — disse ao jornalista Igor Gielow em matéria publicada na Folha de S.Paulo.
No Festival de Sundance, Klondike recebeu o troféu de melhor direção em filmes estrangeiros. Um mês depois, levou o Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. No dia seguinte ao encerramento da mostra alemã, em 21 de fevereiro, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, reconheceu "a independência e a soberania da República Popular de Donetsk e da República Popular de Luhansk", duas regiões separatistas na Ucrânia. No dia 24, as tropas russas invadiram o país vizinho.
No filme, Irka (Oksana Cherkashyna, em uma tremenda atuação) e Tolik (Sergey Shadrin) vivem em Donetsk, nas proximidades da fronteira entre Ucrânia e a Rússia, um território em disputa a partir de abril de 2014. Na primeira cena, descobrimos que o casal aguarda o primeiro filho. Assim que Tolik diz que quer se mudar para longe da guerra, uma bomba destrói parcialmente a casa dos personagens.
Estoicamente, Irka está decidida a ser mãe ali mesmo. Tenta manter uma rotina — ordenha a vaca, limpa a casa — como forma de lidar com o horror e o absurdo da guerra. Une seu instinto de sobrevivência ao amor pelo país. Enquanto isso, Tolik é pressionado por seus amigos separatistas pró-Rússia a se juntar a eles. A tensão aumenta com a visita do irmão de Irka, o soldado nacionalista Yarik, interpretado por Oleg Shcherbina — que, na vida real, também está no front contra os russos, assim como o diretor de fotografia Svyatoslav Bulakovskiy.
A situação se complica ainda mais quando um avião civil, o Boeing 777 da Malaysian Airlines que ia de Amsterdã para Kuala Lumpur, cai na região, matando 298 pessoas, presumivelmente abatido por engano pelas forças separatistas. A tragédia não é fictícia: aconteceu em 17 de julho de 2014. E é outro meio pelo qual Maryna Er Gorbach tenta atrair o espectador ocidental, ainda que essa subtrama acabe sendo um ponto fraco do filme. Ao jornal alemão Zeit, a diretora disse que se lembra muito bem porque é a data de seu aniversário:
— Eu fiquei o tempo todo procurando anúncios oficiais sobre a queda da aeronave, e ninguém foi responsabilizado pelo lançamento dos mísseis. Passaram-se anos e praticamente nada aconteceu. Foi quando percebi: se algo dessa magnitude não é punido, quem se interessará pelo sofrimento do povo de Donbass?
Aí está a chave de Klondike: o foco está no impacto da guerra em uma família comum. Daí a abordagem naturalista e sem pressa nenhuma (em outras palavras, o ritmo pode ser considerado lento). Fosse um filme de Hollywood, veríamos cenas de ação e catástrofe, mas aqui essas coisas são pano de fundo — literalmente. Gorbach e Bulakovskiy investem bastante em imagens nas quais Irka ou Tolik estão em primeiro plano, enquanto no horizonte se enxerga a aproximação de um jipe ou a fumaça do avião derrubado.
A presença cada vez mais constante de paramilitares e o avanço da gestação de Irka vão fazendo subir a sensação de angústia do espectador. Como Zana (Kosovo, 2019) e Quo Vadis, Aida? (Bósnia e Herzegovina, 2020), Klondike retrata o que é ser mãe no contexto de uma guerra que divide um país e suas famílias. Os duelos verbais entre Tolik e Yarik oferecem algum alívio cômico. Quando o primeiro diz que o filho vai se chamar Vladimir (em alusão a Putin), o cunhado retruca:
— Vladimir. É um belo nome. Significa merda.
Depois, quando está ajudando Irka a tirar a imensa camada de poeira do sofá, o irmão da protagonista ironiza:
— Nós construímos e eles destroem.
Mas a frase que marca Klondike e, ao que parece, a guerra entre Rússia e Ucrânia é outra, muito mais soturna e desoladora:
— A guerra só vai acabar quando os inimigos estiverem mortos.