A 18ª edição do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, o 18º Fantaspoa, começou em alta. Já no seu primeiro fim de semana (o evento vai até 1º de maio), exibirá dois filmes que certamente terminarão 2022 na minha lista dos melhores do ano: Neptune Frost (Ruanda/EUA) e Soul of a Beast (Suíça).
Aliás, outras atrações do Fantaspoa devem entrar no ranking, como aconteceu em relação às edições anteriores. Em 2020, emplacaram Pedra, Papel e Tesoura (Argentina), Ausente (Finlândia), Zana (Kosovo), Zumbis no Canavial: O Documentário (Argentina), Butt Boy (EUA) e Barry Fritado (África do Sul). Em 2021, O Grande Salto (Irã), Jumbo (Bélgica), Dois Minutos Além do Infinito (Japão) e A Dark, Dark Man (Cazaquistão).
O "corra para ver" do título desta coluna tem uma segunda justificativa. Neptune Frost e Soul of a Beast terão apenas três sessões no Fantaspoa, sem presença na mostra online que começará no dia 22/4, na plataforma de streaming Darkflix — e sem garantia de que em algum dia serão lançados comercialmente no Brasil. Basta olhar o retrospecto recente do festival: dos mais de cem filmes apresentados nas edições de 2020 e 2021, pode-se contar nos dedos (Aviva, A Cabeleireira, História do Oculto, Zana, talvez mais um outro) os que estrearam no cinema ou estão disponíveis em plataformas de streaming.
Neptune Frost (2021)
Sessões nesta sexta-feira (15), às 20h45min, no Cine Grand Café; no domingo (17), às 16h30min, também no Cine Grand Café; e no dia 21/4, às 14h30min, de novo no Cine Grand Café
Concorrente no troféu Camera d'Or, para diretores estreantes, e à Palma Queer no Festival de Cannes de 2021, este é um dos títulos mais imperdíveis do Fantaspoa, que promove a sua estreia na América do Sul. O filme foi realizado pelo casal Saul Williams, músico, poeta e ator dos Estados Unidos, e Anisia Uzeyman, atriz e cineasta de Ruanda — país incrustado na África Oriental onde ocorreu um genocídio, em 1994, e onde Neptune Frost foi rodado, tendo no elenco ruandeses e artistas do vizinho Burundi.
Trata-se de uma mescla de musical afrofuturista, romance queer e ficção científica politicamente engajada. A história está ambientada em um vilarejo próximo a uma mina de coltan, mistura dos minerais columbita e tantalita que é muito utilizada na fabricação de celulares, notebooks e afins. Os personagens principais são o mineiro Matalusa (vivido por Kaya Free), que, após a morte do irmão, Tekno, por um guarda, decide escapar das condições precárias de trabalho (e que depois, em um trocadilho genial, será chamado de Martin Loser King), e Neptune, intersexual em fuga — o papel é ora interpretado por Elvis Ngabo, ora por Cheryl Ishejar. Matalusa e Neptune vão interagir com tipos alegóricos: Memória, Inocente, Psicologia.
Os 105 minutos de duração são vibrantes, variando imagens aéreas com closes que incluem olhares diretos ao espectador. O idioma também varia, indo do suaíli ao inglês e ao francês, heranças dos colonizadores. Uma das canções do início diz assim: "Vamos hackear / Os direitos à terra e à propriedade / As leis de direito e autoridade / A história bancária / Vamos questionar o negócio da escravidão e o livre trabalho / Vamos hackear / A ambição e a ganância / O tratamento de uma fé em detrimento de outra". Mais adiante, Neptune Frost vai questionar a visão eurocêntrica de mundo ("Eles pensam como o livro deles manda", "A verdade não é uma teoria que pode ser aprisionada num livro"), o imperialismo do empresariado estadunidense — "Fuck, Mr. Google!" — e a nossa própria postura como ocidentais cujo consumo está baseado na exploração africana: "Usam nosso sangue e suor para se comunicar uns com os outros / Mas nunca escutam nossa voz".
Soul of a Beast (2021)
Sessões no domingo (17), às 20h45min, no Cine Grand Café; no dia 22/4, às 14h30min, também no Cine Grand Café; e no dia 29/4, às 16h30min, outra vez no Cine Grand Café
Recordista de indicações à premiação da Academia Suíça de Cinema, realizada no final de março, Soul of a Beast ganhou apenas três das oito categorias disputadas: ator (Pablo Caprez), fotografia e música original. Estas duas últimas têm a participação do polivalente Lorenz Merz, que também assina como roteirista, diretor, coeditor e um dos produtores.
Se a gente resumir ao mínimo, a trama pode parecer convencional — um triângulo amoroso que se forma entre os jovens desajustados Gabriel (papel de Caprez, novato em longas), seu melhor amigo, Joel (Tonatiuh Radzi, também estreante), e a namorada dele, Corey (Ella Rumpf, do filme Raw, de 2016, e da série Tokyo Vice, recém lançada pela HBO Max). Mas há elementos extras que conjuram uma atmosfera constante de risco e de imprevisibilidade. Para começar, Gabriel tem um filho pequeno, o encantador Jamie (Art Bllaca), de quem cuida sozinho, com muito carinho mas com escassos recursos. As referências ao cinema da Ásia Oriental, como a narração em estilo samurai pelo ator japonês Yoshi Amao e uma citação visual de Anjos Caídos (1995), filme de Hong Kong dirigido por Wong Kar-wai, incluem uma afiada espada katana. O trio envolve-se com drogas alucinógenas, anda de moto em alta velocidade, empreende uma invasão noturna ao zoológico de Zurique... Essa aventura vai resultar na fuga de alguns animais — uma girafa, um pavão, dois pumas —, o que deixa a cidade em um estado de tensão registrado pelos programas noticiosos da TV. Turbinada pela atuação inebriante de Ella Rumpf, a personalidade de Corey tem aquela mistura explosiva de urgência e inconsequência: "Sempre tive essa sensação, desde criança. De que não há tempo. De que tenho de fazer tudo agora", ela diz a Gabriel quando o convida para viajar junto para a Guatemala, de onde desceriam de carro para a Bolívia, depois para a Patagônia, até chegar à Terra do Fogo.
"Nada dura" — eis outra frase (fatalista? Profética?) a ressoar em Soul of a Beast, filme que se robustece desde já como um dos melhores do ano graças também às escolhas estéticas de Lorenz Merz. Ao filmar na proporção 4:3, que diminui a área de tela (é um quadrado, e não o tradicional retângulo), o diretor cria não apenas um ambiente claustrofóbico, sufocante. Também se permite aproximar mais a câmera dos rostos e dos corpos dos personagens, que preenchem o quadro com uma intensidade arrebatadora, mesmerizante.