A julgar pelo número de títulos lançados no Brasil, o belga Benoît Drousie, o Zidrou, é um sucesso. Com os recentes A Adoção, em parceria com o desenhista Arno Monin, e A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos, no qual tem ao lado Aimée de Jongh, o roteirista de 60 anos já soma sete histórias em quadrinhos publicadas no Brasil. Para comparar com outros autores europeus contemporâneos, é mais do que o francês Chabouté, 55 anos (cinco), o norueguês Jason, 57 (cinco), o espanhol Miguelanxo Prado, 63 (quatro), e o italiano Gipi, 58 (três).
Essas sete obras saíram por quatro editoras diferentes, o que não deixa de ser um indicativo de como Zidrou tornou-se um nome quente no mercado nacional. Antes de A Adoção (Nemo, tradução de Renata Silveira, 136 páginas, R$ 74,90) e de A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos (Pipoca & Nanquim, tradução de Fernando Paz, 148 páginas, R$ 59,90), a Sesi-SP lançou três volumes da série Verões Felizes, assinada por Zidrou e Jordi Lafebre, e a Faria e Silva trouxe A Mundana, também com Lafebre, e Naturezas Mortas, com arte de Oriol.
Se você ainda não conhece o quadrinista, saiba que essas duas HQs mais recentes justificam toda e qualquer badalação.
Em A Adoção, publicada originalmente em dois volumes (2016 e 2017), Zidrou e Monin contam a história do francês Gabriel e da peruana Qinaya. Ele é um ex-dono de açougue, onde, durante cinco décadas, passou a maior parte do tempo - assim, seus filhos, Alain e Brigitte, se ressentiam da ausência paterna, embora o mesmo endereço tenha forjado memórias afetivas poderosas e saborosas (um sanduíche de terrina com pão quente e picles é uma espécie de madeleine proustiana). Hoje, às vésperas do aniversário de 75 anos, ele gasta os dias se divertindo com os amigos, Gerald e Gaston, ou atormentando a esposa.
Sua rotina será quebrada pela adoção do título: Alain e a esposa, Lynette, voltaram do Peru com Qinaya, quatro anos, sobrevivente de um fictício terremoto que matou milhares de habitantes em Arequipa. Gabriel rejeita a neta — sequer tem fotos dela no celular para mostrar aos amigos no parque ou no restaurante africano que frequentam. Aos poucos, no entanto, essa distância tão transatlântica quanto a da própria viagem empreendida por Qinaya vai sendo vencida.
Zidrou e Monin formam uma parceria extraordinária. Enquanto o artista capricha na expressividade dos personagens e sabe aproveitar os momentos de silêncio, o roteirista lapida diálogos rápidos cheios de bom humor, mas também engendra situações capazes de nos derrubar. Não cabe, aqui, antecipar conflitos, desvios e encontros — o que dá para dizer é que essa HQ faz o leitor experimentar diferentes estados de espírito — do quentinho de uma reconciliação ao frio de uma partida. E à imprevisibilidade da trama se soma a inevitabilidade da emoção: à medida em que acompanhamos as aventuras, os dramas e os lances cômicos daquela família, mais e mais enxergamos neles os dilemas, as dores e as alegrias de todos nós.
Em A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos (2018), Zidrou e Aimée tomam um caminho mais previsível do que o de A Adoção, mas não por isso desprovido de surpresa. E será uma surpresa e tanto, dessas que desafiam a suspensão da descrença mas que são respaldadas pelos fatos e pela ciência.
A leitura começa alternando as reflexões de dois personagens na casa dos 50 para os 60 anos, ambos abalados por um momento difícil. Mediterrânea Solenza acaba de perder a mãe, após nove meses de sofrimento. Ulisses acaba de ser compulsoriamente aposentado da empresa de mudança onde trabalhou a vida toda.
Não é segredo que as duas trajetórias vão se cruzar — a capa da HQ já indica um envolvimento de Mediterrânea com Ulisses. Mas o casamento do texto de Zidrou e da arte de De Jongh produz frutos sublimes, principalmente para quem chegou à parte da vida em que começa a olhar mais para trás do que para frente.
Pelo menos um monólogo interior de Mediterrânea, que se faz acompanhar por uma coleção de quadros destacando partes do corpo da personagem, merece ser transcrito (não à toa, está parcialmente reproduzido na contracapa): "O corpo se resigna mais rápido do que a alma. O tempo o enruga, o injuria, o humilha... o 'envariza', o 'menopausa'... o extenua, o caricaturiza... Bom jogador, o corpo acompanha. O espírito, esse é mau perdedor. Leva mais tempo pra soprar o mesmo número de velas que o corpo. Só se rende aos trancos e barrancos... depois de revelações dolorosas... e sucessivos espantos".
Porém, como em A Adoção, Zidrou também olha para as coisas boas da existência, também faz cócegas com as palavras e também sabe a hora de repousá-las para deixar De Jongh manifestar o desânimo, a perplexidade, a paixão e a felicidade.