Já se foram sete meses do ano: hora de atualizar a lista dos melhores filmes de 2023 até agora.
A regra é clara neste ranking afetivo: só valem longas-metragens que, seja nos cinemas do RS (aí incluído o Fantaspoa), seja nas plataformas de streaming nacionais, foram exibidos pela primeira vez a partir de 1º de janeiro.
A ordem é puramente alfabética (no final do ano, sim, estarão classificados pelos meus critérios de impacto, relevância e ressonância). Tem de tudo um pouco — filme de ação, comédia romântica, desenho animado, cinebiografia, documentário, drama, ficção científica, policial, terror —, e os diretores representam 12 países: Bélgica, Brasil, Canadá, Coreia do Sul, Croácia, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Inglaterra, Irã e Irlanda. Clique nos links se quiser saber mais. E, por favor, comente: para você, quais são os destaques de 2023 até agora?
1) Alcarràs (2022)
De Carla Simón. O drama espanhol que recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim é inspirado na família da diretora, que cultiva pêssegos em Alcarràs, na Catalunha. O filme começa com três crianças, Iris (Ainet Jounou) e os gêmeos Pere e Pau (Joel e Isaac Rivera), brincando na carcaça de um carro, que fingem ser uma nave espacial. Parecem idílicas férias de verão, mas a vida dos pequenos e dos adultos (avós, pais, tios) está para sofrer um choque. Acontece que os Solés arrendam a terra há décadas, desde a guerra civil na Espanha. O patriarca, Rogelio (Josep Abad), não imaginava que o acordo de boca que tinha com os Pinyol pudesse acabar forçando o abandono do lugar ou a mudança de negócio: em vez de plantar frutas, teriam de instalar painéis de energia solar.
Vividos por um elenco local, sem experiência, os personagens reagem cada um a sua maneira. Um se enfurece, outro tenta fingir que nada está acontecendo, um terceiro tenta se unir aos algozes para garantir emprego... Ao não eleger um protagonista, Alcarràs enfatiza a importância e o poder da comunidade em um filme sobre como a modernidade (ou a suposta modernidade) transforma radicalmente a vida no campo. E ao não estabelecer uma narrativa com um desenvolvimento dramático mais convencional, preferindo flagrar os Solés ora em cenas de crise, ora em cenas de alegria, Carla Simón espelha a alternância de momentos bons e ruins das vidas de todos nós. (MUBI)
2) Babilônia (2022)
De Damien Chazelle. O espectador de Babilônia pode reconhecer características dos títulos anteriores do diretor — Whiplash (2014), La La Land (2016) e O Primeiro Homem (2018).
Novamente, Chazelle conta uma história sobre dois jovens que perseguem o sucesso em Los Angeles — outra vez, temos uma aspirante a atriz, Nellie LaRoy (Margot Robbie, excelente), e, se não um pianista, temos um cara que carrega o piano, o faz-tudo Manny (Diego Calva). Novamente, sonhos podem se tornar perigosas obsessões. Novamente, o cineasta busca sincronizar som e imagem, em uma simbiose alucinante orquestrada em parceria com seus colaboradores habituais: o editor Tom Cross e o compositor Justin Hurwitz — autor de um tema absolutamente empolgante e totalmente contagiante, que parte da instrumentação de uma banda de jazz dos anos 1920 mas acrescenta toques de rock e eletrônica. Montagem e música são fundamentais para traduzir a efervescência e a loucura da Hollywood daqueles tempos, às voltas com a complicada transição do cinema mudo para os filmes falados e povoada por tipos como o astro Jack Conrad (Brad Pitt), a cantora andrógina Lady Fay Zhu (Li Jun Li), o trompetista negro Sidney Palmer (Jovan Adepo), a jornalista de fofocas Elinor St. John (Jean Smart) e o gângster vivido de forma simultaneamente patética e assombrosa por Tobey Maguire. (Paramount+ e canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
3) Os Banshees de Inisherin (2022)
De Martin McDonagh. Foi o maior injustiçado do Oscar: recebeu nove indicações e não levou nenhuma estatueta dourada. Merecia pelo menos três: melhor ator, para Colin Farrell, que faz um trabalho mais nuançado, ator coadjuvante, para Barry Keoghan, que evita a caricatura ao interpretar o bobo do vilarejo (também é um sujeito sensível e sofrido), e roteiro original, do próprio McDonagh — a despeito da da criatividade e do desprendimento dos Daniels ao liquidificarem referências cinematográficas em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, a história de Os Banshees de Inisherin é realmente a mais surpreendente.
E também é o que mais faz o espectador se colocar no lugar dos personagens. Naquela ilha da Irlanda dos anos 1920, a batalha pessoal entre dois ex-melhores amigos, Pádraic (papel de Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), não serve de metáfora apenas da guerra civil que marcou o país; o microcosmo representa qualquer cenário onde alguma diferença — política, religiosa, sexual, esportiva etc. — se impõe e anula as muitas semelhanças. Onde as pessoas dão um dedo para não dar o braço a torcer. Onde o ressentimento queima e se alastra. (Star+)
4) Barbie (2023)
De Greta Gerwig. É mais um avanço na carreira da cineasta estadunidense, que começou no cinema alternativo e de baixíssimo custo (Nights and Weekends, longa-metragem de 2008 que ela estrelou e codirigiu, custou US$ 15 mil de orçamento), tornou-se uma das raríssimas mulheres indicadas ao Oscar de direção por Lady Bird: A Hora de Voar (2016) e assinou Adoráveis Mulheres (2019), que disputou a estatueta dourada de melhor filme. Agora, Gerwig entrou para o time das superproduções: bancado pela Warner, Barbie custou US$ 145 milhões — e já se aproxima do US$ 1 bilhão nas bilheterias.
Mas Barbie é um raro tipo de superprodução: não tem um herói masculino e, mais do que isso, tem um discurso feminista. E ainda que traga o logotipo da Mattel nos créditos de abertura, nem a empresa fabricante da boneca escapa das críticas nesta sátira escrita pela diretora com o seu companheiro, o cineasta Noah Baumbach. Ao entrar numa crise existencial, começando a pensar em morte e em celulite, a protagonista vivida por Margot Robbie descobre que precisa ir para o mundo real, para encontrar a criança que brinca com ela. O Ken (Ryan Gosling) apaixonado por ela vai junto, e aí os dois percebem que, do lado de cá, há um patriarcado: são os homens que mandam e as mulheres são constantemente assediadas e menosprezadas. (Em cartaz nos cinemas)
5) As Bestas (2022)
De Rodrigo Sorogoyen. Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs) são um casal francês que vive em uma aldeia no interior da Galícia. Lá, eles levam uma vida tranquila, cultivam vegetais e reabilitam casas abandonadas, embora sua convivência com os moradores locais não seja tão amistosa quanto desejam. Sua recusa em concordar com a implementação de um parque eólico acentuará os desentendimentos com os vizinhos, especialmente com os irmãos Xan (Luis Zahera) e Loren (Diego Anido).
Desde a cena de abertura, ao mesmo tempo selvagem e poética, em que homens se atiram sobre cavalos bravios para tentar domá-los, As Bestas justifica a vitória arrasadora no Goya, o prêmio da Academia Espanhola. Foram nove troféus: melhor filme, direção, ator (Ménochet), ator coadjuvante (Zahera, cru e assustador), roteiro original, fotografia, edição, som e música (que aparece sucintamente, mas é fundamental na construção da atmosfera). Sorogoyen retrata como podem ser tensas as relações humanas, sobretudo quando temperadas pela xenofobia e por visões de mundo muito diferentes: para Xan e Loren, vender as terras é a chance de escapar da miséria e do "cheiro de merda"; para Antoine e Olga, que vieram da cidade, a simplicidade da vida rural foi uma escolha. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
6) Close (2022)
De Lukas Dhont. Ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e foi o concorrente da Bélgica no Oscar de melhor filme internacional. É um belo e triste drama sobre amizade, masculinidade tóxica e homofobia na adolescência.
Com um estilo de filmagem muito naturalista, que remete ao dos irmãos belgas Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Close tem como personagem principal Léo (em ótima atuação do estreante Eden Dambrino), 13 anos, filho caçula de agricultores que cultivam flores e melhor amigo de Rémi (Gustav De Waele), que tem a mesma idade e estuda oboé para um dia, quem sabe, tornar-se músico. Os dois garotos não se desgrudam, passam o dia inteiro brincando, e de noite chegam a dormir abraçados. Mas não são namorados. Ou não importa se são ou não são, como disse o diretor em uma entrevista. Este é um filme sobre como matamos a amizade entre meninos desde que eles são jovens. À medida que envelhecem e passam a lidar mais com as expectativas de masculinidade, os garotos se veem forçados a deixar de lado a ternura e a fragilidade e a abraçar a agressividade e a violência. (MUBI)
7) Decisão de Partir (2022)
De Park Chan-wook. O cineasta sul-coreano de Oldboy (2003) e A Criada (2016) venceu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes por esta mistura de policial e romance. Tudo começa com o assassinato de um empresário rico, caso que será investigado pelo extremamente meticuloso detetive Jang Hae-Joon (Park Hae-il). A principal suspeita é a jovem esposa chinesa do falecido, Song Seo-rae (Tang Wei). Aos poucos, o caráter obsessivo de Hae-joon mistura-se a uma paixão avassaladora pela viúva.
Ao retratar as contradições de seu protagonista, Chan-wook abre um pouco mão de sua violência característica em nome de uma sensualidade à beira do explosivo. Com um quê de Brian De Palma, trabalha no registro voyeurístico e na duplicidade de seus personagens — todos estamos sempre encenando, sempre há um fino véu encobrindo nossas reais intenções. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Claro TV e Google Play)
8) Entre Mulheres (2022)
De Sarah Polley. Ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado, traz uma admirável seleção feminina, a começar por sua cineasta, que dirige as atrizes Frances McDormand, Jessie Buckley, Rooney Mara e Claire Foy. No início do filme, o espectador pode achar que a história se passa em uma época já bastante distante, por causa dos cenários, dos figurinos, da ausência de tecnologia e das restrições impostas às mulheres — por exemplo, elas não podem estudar e são todas analfabetas. Mas não: Entre Mulheres se passa em 2010, em uma comunidade religiosa isolada do resto do mundo, onde mulheres de todas as idades precisam conviver com as agressões físicas e o abuso sexual cometido por um bando de homens.
Quando elas descobrem que os estupros sofridos não eram obra do demônio, mas cometidos por homens que usavam tranquilizante empregado em vacas para dopar as mulheres e adolescentes e violentá-las enquanto dormiam, os agressores são presos e levados para uma cidade próxima. Só que logo vão voltar, afinal, a maioria dos homens compactua com a cultura do estupro. Aí, as personagens têm dois dias para se reunir em um celeiro e resolver como vão proceder: não fazem nada? Ficam e enfrentam os estupradores? Ou vão embora? É um debate tão doloroso quanto bonito, atravessado pelas questões de fé e religiosidade. (NOW e disponível para aluguel em Amazon Prime Video e Apple TV)
9) Os Fabelmans (2022)
De Steven Spielberg. É uma autobiografia disfarçada do cineasta três vezes ganhador do Oscar - como diretor e produtor de A Lista de Schindler (1993) e como realizador de O Resgate do Soldado Ryan (1999). A história começa na fila para uma sessão de O Maior Espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. De Mille, e termina com uma visita do alter ego de Spielberg, o jovem Sammy Fabelman (interpretado por Gabriel LaBelle), à sala do mestre John Ford. Entre um fato e outro, Sammy precisa lidar com seus problemas familiares (a propósito, Paul Dano e Michelle Williams encantam nos papéis do pai e da mãe) e escolares ao mesmo tempo em que descobre não apenas técnicas de filmagem — vide os efeitos visuais em um bangue-bangue caseiro —, mas sobretudo os poderes do cinema. Se o desastre de trem no filme de De Mille provocou um trauma, por exemplo, a reprodução, com uma câmera super-8 e um trenzinho de brinquedo, traz a cura.
Indicado em sete categorias do Oscar (perdeu todas), Os Fabelmans nos convida a um passeio pelos temas, pela carreira e pela vida pessoal de Spielberg — por extensão, pela vivência de todos os cineastas e de todos os espectadores. Os filmes aparecem como válvulas de escape, como metáforas, como meio de dizer aquilo que não se consegue verbalizar, como meio de mostrar aquilo que não se consegue ou não se quer enxergar. (NOW e disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play; estreia no dia 22/8 na HBO Max)
10) Homem-Aranha Através do Aranhaverso (2023)
De Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson. A sequência de Homem-Aranha no Aranhaverso (2018), que venceu o Oscar de melhor animação, já desponta como favorita para conquistar a estatueta dourada no ano que vem. O roteiro escrito por Phil Lord, Christopher Miller e Dave Callaham leva Miles Morales para viajar pelas mais diferentes e irreverentes realidades. É uma jornada psicodélica, na qual o público se diverte conhecendo outras variações do Amigão da Vizinhança e seus mundos. Como escreveu meu colega Carlos Redel, o filme tem o trabalho e o cuidado de entender como cada um daqueles personagens que preenchem uma infinita teia de realidades funciona, desde um universo de LEGO com todas as suas montagens e desmontagens, passando por um Aracnídeo da animação dos anos 1960, com movimentos limitados pela tecnologia da época, e chegando ao desbunde visual da versão indiana e à racionalidade amarga do Homem-Aranha 2099.
Enquanto Miles precisa lidar com o vingativo vilão Mancha, também enfrenta a própria jornada de amadurecimento, tentando equilibrar seus sonhos, a expectativa de seus pais e a responsabilidade de ser um super-herói. E Gwen Stacy "tem o seu arco desenvolvido com extrema competência, conseguindo fazer um contraponto ao protagonista, mostrando que ser alguém que foi picado por uma aranha radioativa e ganhou poderes é estar sob constantes sacrifícios e segredos, o que vai minando a sua vida pessoal". (Em cartaz no Espaço Bourbon Country e diponível para aluguel em Claro TV a partir de 8/8 e em Amazon Prime Video a partir de 10/8)
11) Medusa (2021)
De Anita Rocha da Silveira. Premiado em festivais como o de San Sebastian e do Rio, é o filme de terror da bela, recatada e do lar. Como em Mate-me Por Favor (2015), a diretora carioca segue lidando com personagens femininas, com sexualidade, com a iminência da morte e com a crítica social. E volta a escalar a atriz Mari Oliveira, agora alçada à condição de protagonista.
Ela interpreta a enfermeira Mariana, participante de um grupo de música e dança (com figurinos e passos comportados, é claro) chamado de Preciosas do Altar. A líder é Michele (Lara Tremouroux), estrela nos cultos evangélicos do pastor Guilherme (Thiago Fragoso), que comanda uma milícia de extrema-direita e busca se eleger deputado. No palco, elas cantam versos sobre mulheres "devotas e submissas ao Senhor". Nas ruas, atacam mulheres consideradas promíscuas ou "bonitas demais". Quando uma das vítimas das blitze moralistas revida, machucando o rosto de Mariana, a protagonista se vê rejeitada e precisa lutar para se recolocar no ambiente social. Também passa a refletir sobre os ideais ultraconservadores, o radicalismo, a misoginia e a hipocrisia de seus pares, e a se interessar mais e mais pelo rumoroso caso de uma mulher desfigurada, Melissa (em participação especial de Bruna Linzmeyer). (Canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
12) A Mesa da Sala de Jantar (2022)
De Caye Casas. Começa como uma comédia engraçadíssima: Jesus (David Pareja, melhor ator na mostra ibero-americana do Fantaspoa) e María (Estefania de los Santos), pais do recém-nascido Cayetano, estão em uma loja de móveis, onde um vendedor picareta tenta convencer o casal de comprar "la mesita del comedor" do título original, a mesinha de centro Röret, uma peça de "design sueco, pintada em bronze, com vidro inquebrável, sobre uma estrutura com a imagem de duas belas garotas, feitas em marfim e banhadas numa perfeita imitação de ouro". O marido quer levar, a esposa não, mas como ela já escolheu as cores do apartamento, o dia do casamento, o terno que ele vai usar, o vestido da sogra, a hora de ter um filho e o nome do guri — "Um nome ruim, de toureiro fascista!" —, Jesus pode curtir uma rara e pequena vitória no dia em que vão receber a visita de seu irmão, Carlos, e de sua namorada de 18 anos, Cris.
E mais não dá para dizer sobre este filme espanhol que, como de costume no Fantaspoa, nos pega de surpresa (não à toa, ganhou o troféu de melhor roteiro na competição ibero-americana), oferecendo uma trama absolutamente incomum e nos colocando em uma situação absurdamente aflitiva, na qual um dos personagens sabe de algo que os outros desconhecem. Prepare-se para suar frio, quem sabe até ficar nauseado, mas não deixe de ver quando estrear oficialmente. Este é do tipo um em um milhão. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
13) Missão: Impossível: Acerto de Contas, Parte 1 (2023)
De Christopher McQuarrie. Não faltam grandes cenas de ação na temporada: a pancadaria e o tiroteio no meio do caótico trânsito ao redor do Arco do Triunfo, em Paris, em John Wick 4: Baba Yaga; o plano-sequência no trem em Resgate 2; o "pouso" do Dodge Charter de Toretto, pulando de um avião em cima de uma estrada apinhada de veículos em Velozes e Furiosos 10; Peter Quill e companhia enfrentando um exército de homens e monstros ao som dos Beastie Boys em Guardiões da Galáxia Vol. 3. Mas acho que Missão: Impossível 7 é o representante do gênero por excelência, por quantidade e por intensidade.
A nova aventura do agente Ethan Hunt (Tom Cruise) não dá respiro ao espectador. De quebra, aborda um tema quente (o da inteligência artificial), dá uma cutucada em Hollywood (subserviente à computação gráfica em suas superproduções) e aumenta o protagonismo feminino (com destaque para Hayley Atwell, no papel de uma ladra que literalmente rouba a cena). (Em cartaz nos cinemas)
14) Molli e Max no Futuro (2023)/Rye Lane: Um Amor Inesperado (2023)
Conto como um díptico involuntário estas duas comédias românticas que, se não reinventam o gênero, pelo menos mostram que ainda tem muito a oferecer. Em Molli e Max no Futuro, que venceu a mostra internacional no Fantaspoa, o diretor estadunidense Michael Lukk Litwak acompanha um homem (Aristotle Athari) e uma mulher (Zosia Mamet) cujas órbitas se chocam repetidamente ao longo de 12 anos, quatro planetas, três dimensões e um culto espacial. Imagine uma cruza entre Harry & Sally: Feitos um para o Outro (1989), Blade Runner (1982) e a Trilogia do Antes (1995-2013), de Richard Linklater. Humor, romance, discussões filosóficas e reflexões sobre para onde os avanço tecnológicos estão nos levando se misturam a carros voadores, homens-peixe e gigantescos robôs de luta. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
Em Rye Lane, a diretora inglesa Raine Allen Miller conta a história de Dom e Yas, personagens vividos com graça, energia e química por David Jonsson e Vivian Oparah. Eles se conhecem por acaso em um banheiro unissex de uma galeria de arte. Recém-saídos de namoros fracassados, os dois discutem relacionamentos, amores, sonhos e decepções enquanto passeiam pelas ruas do sul de Londres. O cenário é um personagem à parte e a solução encontrada para apresentar flashbacks é muito bacana. (Star+)
15) A Noite do Dia 12 (2022)
De Dominik Moll. Trata-se do grande ganhador da mais recente edição do César, o prêmio da Academia Francesa. Foram seis troféus: melhor filme, direção, ator coadjuvante (Bouli Lanners), ator revelação (Bastien Bouillon), roteiro adaptado e som. Baseado em uma história real, A Noite do Dia 12 se passa em Grenoble, no sudeste da França, onde uma garota de 21 anos é incendiada por um desconhecido quando voltava para casa — solucionar o crime se torna a obsessão do detetive.
Logo surge o primeiro desafio: existem vários suspeitos, porque a jovem tinha vários ex-namorados (ou coisa parecida). A sinopse pode induzir o espectador a imaginar um típico filme policial de caça ao assassino, mas A Noite do Dia 12 evita os clichês e as liberdades artísticas do gênero. Há um realismo feito ora de excitação, ora de frustração, ora de momentos graves, ora de conversas corriqueiras. Entre uma coisa e outra, discute-se a culpabilização da vítima e a naturalização da violência contra a mulher. (Em cartaz na Sala Paulo Amorim)
16) Oppenheimer (2023)
De Christopher Nolan. Ambição é o que não falta ao cineasta e ao protagonista deste épico com três horas de duração (a maior na carreira do diretor), orçamento de US$ 100 milhões e mais de 70 atores no elenco que reconstitui a turbulenta trajetória do físico estadunidense considerado o pai da bomba atômica: J. Robert Oppenheimer (1906-1967), brilhantemente interpretado pelo irlandês Cillian Murphy, em sua sexta colaboração com Nolan, depois da trilogia do Batman (2005-2012), de A Origem (2010) e de Dunkirk (2017).
Apesar de ser uma cinebiografia ambientada no passado (com três tempos narrativos, como de costume na filmografia do diretor), Oppenheimer tem a ambição de falar da humanidade como um todo e de dilemas muito contemporâneos. Por um lado, seu protagonista nos lembra como somos complexos e contraditórios: Oppenheimer é egocêntrico, mas também é atormentado por dúvidas e inseguranças (será que a bomba vai trazer a paz — mesmo que pelo medo — que ele imagina?); é um cientista, mas também é um sujeito passional (o que vai render a primeira cena de sexo em um filme de Nolan); é um gênio, mas também é ingênuo ("Como esse homem que viu tanta coisa pôde ser tão cego?", afirma um personagem). Por outro lado, o cineasta disse esperar que seu filme sirva de alerta para as empresas de tecnologia: "Quando falo com os principais pesquisadores no campo da inteligência artificial (IA), eles dizem que estão em seu momento Oppenheimer. Eles estão olhando para a história para tentar responder: 'Quais são as responsabilidades dos cientistas que desenvolvem novas tecnologias que podem ter consequências não intencionais?'." (Em cartaz nos cinemas)
17) Soft & Quiet (2022)
De Beth de Araújo. Filha de um brasileiro com uma chinesa-estadunidense, a diretora e roteirista acompanha em tempo real — ou seja, como se tudo tivesse sido filmado em um único plano-sequência — a primeira reunião de um grupo de mulheres neonazistas. Entre elas, está a professora de educação infantil Emily (Stefanie Estes), protagonista da trama.
Merecidamente ganhadora do prêmio de melhor direção na competição internacional do Fantaspoa (tem absoluto controle do caos), Beth de Araújo ilustra como, na casa do vizinho ou na porta ao lado, os ideais neonazistas germinam e se alastram, tendo entre os fertilizantes o ressentimento e a ignorância. Soft & Quiet também mostra como a teoria vira prática, como uma suposta "brincadeira" pode descambar para algo muito sério. Basta uma fagulha para provocar um incêndio — e aí a masculinidade tóxica surge como outro combustível: é por meio dela que Emily induz o marido a participar de uma ação que vai de mal a pior, tornando-se cada vez mais aflitiva e asfixiante, a ponto de só conseguirmos respirar no último instante do filme. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
18) TÁR (2022)
De Todd Field. O cineasta californiano evita os típicos caminhos hollywoodianos ao acompanhar a jornada autodestrutiva de uma celebridade da música clássica, a regente Lydia Tár, encarnada pela maravilhosa Cate Blanchett (foi um pecado não ter levado o Oscar; aliás, foi um pecado TÁR sair de mãos abanando). Field pega desvios e, em vez de oferecer cenas à la cartão postal, em que tudo está dado, nos convida a explorar detalhes e a flagrarmos sua protagonista em momentos de intimidade, de vulnerabilidade, de crueldade.
Charlotte Higgins, redatora-chefe de Cultura do jornal britânico The Guardian, resumiu várias interpretações conflitantes de TÁR: "Que é uma deturpação vergonhosa do campo da música clássica; que tudo é muito real; que tudo é muito surreal; que carrega um peso intelectual que é raro no cinema; que não é tão esperto quanto pensa; que não se trata de regência, mas sim de poder; que não se trata de poder, mas sim de narcisismo; que se trata de um choque de ética entre as gerações; que é sobre o feminismo da terceira onda; que sua protagonista, em toda a sua antipatia, é arrebatadoramente complexa; que sua protagonista é irremediavelmente odiosa; que é uma anatomização fascinante da cultura do cancelamento; que na verdade é um filme retrógrado que tem um objetivo amargo na política identitária". Pode-se acrescentar outros temas e outras queixas levantados, como a possibilidade ou não de se separar o artista da obra, sobretudo à luz dos debates sobre diversidade de gênero e representatividade étnica; as semelhanças marcantes, nos dados biográficos, e diferenças gritantes, na conduta pessoal, entre a personagem central e a maestra Marin Alsop; e o fato de que essa protagonista é uma predadora sexual, que usa a sua posição hierárquica e seu status artístico para levar para a cama, enquanto aqui, na vida real, a grande maioria dos que se valem disso para cometer abuso são homens. "Depois", prosseguiu Higgins, "há um extenso debate online dedicado a decodificar seu misterioso ato final. Há algo empolgante em um filme que é tão aberto, que demanda tanta discussão". Assino embaixo. (NOW e disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
19) Terceira Guerra Mundial (2022)
De Houman Seyyedi. Foi o selecionado para o Oscar internacional pelo Irã, que vem sendo muito bem representado no Fantaspoa: em 2020, tivemos Uma História Cabeluda; em 2021, O Grande Salto; e no ano passado, Matando o Eunuco Khan. Também ganhou dois prêmios na mostra Horizonte do Festival de Veneza: melhor filme e melhor ator (Mohsen Tanabandeh, também laureado na mostra internacional do Fantaspoa).
Shakib, um sem-teto de meia-idade que mantém uma espécie de relacionamento com uma prostituta surda e muda (Mahsa Hejazi), vira operário em um canteiro de obras que vai se transformar no cenário de um filme sobre as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Por incidentes fortuitos e por cair na simpatia do diretor, ele acaba escalado para substituir o ator que faria o papel de Adolf Hitler. Com essas tintas, Terceira Guerra Mundial faz um retrato das relações de poder, misturando as cores do absurdo e do abuso, e uma analogia dos campos de concentração nazistas, fazendo jus à epígrafe dos créditos de abertura: "A História não se repete, mas costuma rimar", uma frase atribuída ao escritor estadunidense Mark Twain. O roteiro é uma peça de ourivesaria: até os pequenos detalhes, supostamente desimportantes, vão ter um peso tremendo. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
20) Till: A Busca por Justiça (2022)
De Chinoye Chukwu. Lamentavelmente ignorado nas indicações ao Oscar, Till tem como trunfo uma das atuações mais marcantes da temporada: a de Danielle Deadwyler, premiada no Gotham e pela National Board of Review, indicada ao Critics' Choice e concorrentes no Bafta (da Academia Britânica) e no SAG Awards (do Sindicato dos Atores dos EUA). A atriz interpreta uma personagem histórica: Mamie Till-Mobley (1921-2003), que se tornou uma ativista dos direitos civis para os afro-americanos após a morte por linchamento de seu único filho, Emmett, 14 anos, em agosto de 1955, no Mississippi.
No racista Sul dos Estados Unidos, qualquer fagulha pode acender um incêndio. No caso de Emmett, foi um assobio. A partir daí, a revolta e a dor compartilham o espaço com a bela atuação de Deadwyler, que é sublinhada pela música composta pelo polonês Abel Korzeniowski, ora grave, ora emotiva. Na pele de Mamie, a atriz experiencia todos os estágios do luto de uma mãe que sabe o quanto seu filho sofreu (a cena no necrotério é fortíssima) — um luto que vai transformar em luta. (Amazon Prime Video)
21) O Tio (2022)
De David Kapac e Andrija Mardesic. É como se fosse uma cruza de Feitiço do Tempo (1993), aquela comédia em que Bill Murray é condenado a reviver o mesmo dia indefinidamente, com os perturbadores filmes de Michael Haneke. Aparentemente, estamos no final da década de 1980, quando a Croácia ainda integrava a Iugoslávia, país que se dissolveu em várias repúblicas a partir do início dos anos 1990. Acompanhamos uma família — o pai (Goran Bogdan), a mãe (Ivana Roscic) e o filho (Roko Sikavica) — nos preparativos para um jantar de Natal, no qual terão como convidado o tio (Predrag "Miki" Manojlovic, assombroso) vindo da Alemanha.
O que começa em um tom de humor esquisito e incômodo (o tio trata o sobrinho, que já tem seus 20 e tantos anos, como um adolescente imberbe e, lascivamente, compara a mulher da casa com Sophia Loren) vai ganhando contornos mais sinistros à medida que essa situação se repete, dia após dia. Mas por que essa situação se repete? O que explica alguns anacronismos? Quais são as reais intenções de todos os personagens? O Tio é um dos filmes mais envolventes e intrigantes do ano. (Foi exibido no Fantaspoa, onde recebeu o prêmio de melhor roteiro na mostra internacional, e ainda não tem previsão de estreia)
22) De Tirar o Fôlego (2023)
De Laura McGann. É um documentário que faz jus ao título e ao tema — o mundo do mergulho livre. O espectador pode realmente ficar sem ar ao acompanhar a história de Alessia Zecchini e Stephen Keenan, contada pela diretora e roteirista irlandesa com técnicas do suspense. Por isso, tanto melhor será a sua experiência se, como os praticantes desse esporte, você decidir submergir sem equipamento, ou seja, sem muitas informações.
Mas algumas coisas podem e devem ser ditas sobre De Tirar o Fôlego para atiçar sua curiosidade. Por exemplo: um dos cenários é o Blue Hole (buraco azul, em inglês), em Dahab, no Egito, considerado um dos locais mais famosos para o mergulho livre. Perigosíssimo, já matou mais gente do que o Monte Everest, nos Himalaias. Calcula-se que pelo menos cem mergulhadores já deixaram suas vidas no sumidouro que chega a ter 120 metros de profundidade e uma estrutura claustrofóbica e desorientadora, batizada de O Arco. Em 1997, os corpos entrelaçados de dois jovens mergulhadores foram resgatados. É provável que um tenha agarrado o outro enquanto entrava em pânico, arrastando para a morte o companheiro. (Netflix)
23) Tudo o que Respira (2022)
De Shaunak Sen. Foi um dos cinco competidores no Oscar de melhor documentário. Registra a luta de dois irmãos — Saud e Nadeem — para, na companhia do amigo Salik, proteger e recuperar pássaros conhecidos como milhafres-pretos (black kite), afetados pela poluição que se abate sobre o céu e o ambiente de Nova Déli, na Índia. A cidade também sofre com uma escalada da violência de cunho religioso.
Sem lançar mão de narração ou de entrevistas propriamente ditas, Tudo o que Respira (All That Breathes) estimula a reflexão sobre a relação do homem com a natureza — e com seus semelhantes — e consegue extrair imagens poéticas de ambientes degradados. (HBO Max)