Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos
Aflição nº 1: os livros como perseguidores implacáveis
Como muitos escritores, passei boa parte de minha vida correndo atrás de livros - obras que me servissem de modelo, de inspiração. Fui a livrarias, a sebos, revirei as famosas caixas da Feira do Livro. E isso, acho, acontece com todos.
Mas há um momento na vida dos escritores em que os livros começam a correr atrás dos autores. Isso acontece, sobretudo, em encontros de literatura. Nessas ocasiões, numerosas pessoas distribuem exemplares de suas obras, o que é sempre uma coisa amável e uma fonte frequente de surpresas agradáveis. Mas quando o evento ocorre numa cidade distante surge um problema: como transportar tantos livros? A esses objetos jamais se aplica a frase que a mão divina inscreveu na parede do palácio de Nabucodonosor, a sentença interpretada por Daniel: "Foste pesado na balança e encontrado muito leve". Livros raramente são leves. De outra parte, não são raros os escritores que sofrem de problemas na coluna: muitas horas sentados ao computador, o peso da vida... E aí está criado o dilema: os escritores querem levar os livros que recebem, mas não têm forças para tanto.
Um jeito é "esquecer" os livros no hotel. Mas aí, inevitavelmente, surge uma fantasia paranoica: e se, por acaso, a camareira for amiga de um dos autores e contar sobre esse inesperado achado? Pode-se, claro, remover os indícios do crime, isto é, a folha com a dedicatória. Mas não é impossível que a camareira, movida por ânimo vingador, investigue e descubra quem foi o ocupante do aposento. A folha com dedicatória tem esse risco. O escritor pernambucano Raymundo Carrero contou-me que deu um livro, autografado, a um crítico - para, já no dia seguinte, encontrá-lo em um sebo de Recife. Telefonou ao ingrato, perguntou o que tinha achado da obra. "Estou lendo com grande prazer", foi a resposta. "Da outra vez que você mentir", disse Carrero, "pelo menos arranque a folha com a dedicatória".
Outro jeito é deixar os livros no avião. Foi o que fez um amigo meu: ele transportou a preciosa carga intelectual até a aeronave, mas na hora de desembarcar deixou-a no compartimento de bagagens. Quando estava saindo do aeroporto, chamaram-no pelo alto-falante ao balcão da Varig. Lá, um radiante funcionário avisou que tinham achado os livros e, graças ao computador, haviam conseguido identificar o único ocupante daquela fila de assentos. O escritor conta que levou os livros para casa e nunca mais tentou livrar-se deles.
Aflição nº 2: a evanescente memória dos literatos
Os escritores podem sofrer dois tipos de bloqueio. Um é o bloqueio de criação, a síndrome da página (ou da tela) em branco. Sentado durante horas, dias, anos, o pobre ficcionista espera em vão por uma ideia - que não vem. Pessoas que passaram por isso dizem que se trata de uma experiência muito angustiante.
O outro bloqueio surge depois que o livro foi escrito. É um bloqueio de memória, não de inspiração. E é um bloqueio seletivo: refere-se aos nomes dos autografandos. A pessoa está na frente do escritor, sorridente, esperando por uma dedicatória. Que não vem - por causa do esquecimento.
Passei por numerosas situações desse tipo, mas há uma que não esqueço. Um dia entrei na Livraria do Globo (sobre escritores perseguindo livros, ver aflição nº 1) e lá encontrei o professor Ernildo Stein. Que, por coincidência, tinha comprado dois exemplares de um livro meu. De imediato pediu-me autógrafos, para ele e a irmã. Orgulhoso, saquei a caneta... E pronto, o nome dele sumiu de minha memória. Enfiou-se numa daquelas obscuras cavernas do inconsciente e dali não saía.
Não preciso dizer que entrei em pânico. Mas disfarcei, procurei manter a calma e recorrer a algum truque. Pedi que dissesse o nome da irmã. Ele disse, mas não resolveu nada, não fez cair a famosa ficha (agora substituída pelo cartão telefônico). Em desespero, resolvi puxar conversa. Perguntei se ele por acaso tinha visto o Carlos Appel. Ernildo, um tanto surpreso, disse que não: fazia tempo que não falava com o Appel. Mas então tu tens de ligar para ele, eu disse. Peguei minha caderneta de endereços e comecei, supostamente, a procurar o fone do Appel. Minha esperança era que, de repente, eu encontrasse o nome do Ernildo...
Não encontrei, ele já consultava o relógio, e, arrasado, vi que teria de confessar minha fraqueza: sinto muito, mas não consigo lembrar teu nome. E naquele momento - aleluia! - abriram-se os porões da mente, fez-se a luz. Era o Ernildo! O Ernildo Stein! Grande Ernildo Stein! Eu tinha vontade de entoar o nome dele ao som da Nona Sinfonia de Beethoven!
Falem vocês da glória da literatura. Eu só lembro as aflições.
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